Opinião

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    PRESTEZA E EFICIÊNCIA NA CONTRATAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS DE SAÚDE EM CONTEXTO DE PANDEMIA

     

     

    *Jessé Torres Pereira Junior

     

     

     

    O quarto de século cumprido de vigência da Lei federal nº 8.666/93 continua a suscitar manifestações que vão do repúdio à sua permanência na ordem jurídica positiva brasileira ao aplauso por sua existência, embora com ressalvas quanto à necessidade de seu aperfeiçoamento pontual. Contribui para a controvérsia a tramitação, pelo Congresso Nacional, do Projeto de Lei nº 6.814/2017, que pretende a revogação de todas as leis que regem a atividade licitatória e contratual do estado, a partir da Lei federal nº 8.666/93, substituindo-as por lei que integre, sistemicamente, as normas que o direito brasileiro tem produzido sobre a matéria.

    Sobre tal projeto veiculam-se opiniões que lhe propõem inúmeras e discrepantes alterações, tais como: inserir regras sobre sustentabilidade ambiental, a serem observadas em editais e cláusulas contratuais, determinantes da desclassificação, sem prejuízo à competitividade, de propostas de empresas que as descumpram de modo a causar danos sociais, econômicos e ambientais que se conjugam; restringir a modalidade licitatória do pregão a compras e serviços comuns (os que são encontrados no mercado com características que satisfazem às necessidades administrativas), ou ampliar a sua aplicação para abranger obras e serviços de engenharia; extinguir as modalidades de tomada de preços e convite; instituir a técnica de compras compartilhadas entre órgãos e entidades com objetivos institucionais convergentes; admitir, nas licitações, orçamentos sigilosos como meio para evitar a cartelização, ou proscrevê-los com o fim de precatar vazamentos que alimentem informações privilegiadas; exigir que empresas contratadas pelo estado adotem regras de integridade (compliance) como política compulsória de prevenção da corrupção, vinculada, ou não, ao valor do contrato e ao prazo de sua duração; impor, como requisito de habilitação para participar de licitações e para contratar com o estado, o da inexistência de antecedentes de sanções aplicadas à empresa (“ficha-limpa”); conferir maior autonomia a estados e municípios na formulação de normas próprias de licitações e contratações, independentemente das normas gerais da legislação federal, com o fim de ajustar a atividade contratual desses entes federativos às circunstâncias, peculiaridades e disponibilidade de seus recursos organizacionais, materiais, financeiros e humanos.

    Percebem-se dois elos entre essas e outras proposições que vão e vem no cenário brasileiro da atividade contratual estatal, aparentemente díspares do ponto de vista técnico e administrativo, e já agora a incorporar alternativas destinadas a conferir maior presteza e eficiência na contratação de bens e serviços necessários ao enfrentamento da pandemia trazida pelo coronavirus: o primeiro, o da insatisfação com o elevado grau de insegurança jurídica gerada por legislação extensa e fragmentada, sujeita a conflitos de interpretação entre os agentes de sua aplicação e os agentes de controle interno e externo dessa aplicação (CF/88, art. 74), a provocar incertezas quanto à qualidade dos resultados obtidos a cada contratação, bem como à configuração e à extensão de responsabilidades administrativas, civis e penais daqueles agentes; o segundo, o da suspeita de que a etiologia dessa insegurança jurídica advenha de uma cultura de gestão pública que não logra avanços expressivos, nem mudanças significativas, quaisquer que sejam as normas reguladoras que se adotem, ou seja, ou se promove a educação para o desempenho de uma fundamental ética de boa-fé objetiva na gestão dos contratos públicos ou estes sempre estarão expostos a desvios, qualquer que seja o seu quadro regulatório.

    O prometo de nova lei de licitações e contratos em gestação há de primar por soluções que viabilizem segurança jurídica e flexibilidade de gestão de modo ético e inclusivo, viabilizando permanente diálogo entre estado e sociedade, agentes executores e controladores, públicos e privados, partícipes todos os poderes do estado. Os pontos mais sensíveis seriam:

    (i) licitações e contratos administrativos devem resultar de sede jurídica formal que cumpra o devido processo legal, não apenas quanto a ritos, se não que, também, quanto à transparência, o que pressupõe protagonistas solidamente preparados, tanto técnica quanto eticamente, preparo esse exigente de treinamento prévio e permanente de todos os agentes públicos designados para atuar nesse segmento administrativo, qualquer que seja a modalidade de licitação ou no desempenho nas funções de fiscalização e gestão de contratos, que se devem segregar e especializar;

    (ii) a fase interna desse processo administrativo (aqui entendido em sua acepção universal de conjunto coordenado de atos que se praticam com observância de projeto, cronologia, prazos e competência funcional predeterminados, com o fim de produzir resultado de interesse público) deve retratar o atento cumprimento de todo o ciclo virtuoso da gestão (planejamento, execução, controle e avaliação), mediante o entranhamento, nos autos de cada processo, de todas as peças respectivamente pertinentes e necessárias à tomada de decisões (estudos, projetos, levantamentos, pesquisas, pareceres), a atrair a responsabilidade subjetiva de seus signatários;

    (iii) mecanismos eficientes para a prevenção de desvios e fraudes na definição do objeto a ser contratado e na estimativa de seu valor de mercado - que se há de fundar em ampla pesquisa em várias fontes -, de sorte a evitar direcionamentos e conluios comprometedores da competividade e da identificação da melhor proposta, que nem sempre será a de menor preço em face das peculiaridades do objeto, dos prazos e métodos de sua execução, com repercussão sobre os riscos e a duração do contrato;

    (iv) na elaboração do ato convocatório do certame, atenção deve ser concentrada na escolha do modo de proceder-se à licitação e aos critérios e fatores de julgamento objetivo de propostas, com teores equilibrados de vinculação e discricionariedade, a preservar a competividade e respeitar as características do objeto, capazes de garantir que o contrato decorrente venha a cumprir as funções e as finalidades planejadas, bem assim a conter-se dentro do custo estimado;

    (v) critérios e fatores de julgamento de propostas, objetivos e contribuintes para evitar fracionamentos indevidos do objeto - inspirados pelo falseamento de hipóteses de contratação sem licitação - ou parcelamentos de objeto que comprometam a economia de escala;

    (vi) metodologia que sustente o exercício isonômico, por pregoeiro ou comissão de licitação, do juízo de admissibilidade de propostas de preço ou técnicas, de modo a que o órgão julgador distinga, fazendo reagir cada proposta em face das exigências do edital, as hipóteses de sua classificação ou desclassificação, sempre dependentes de expressa motivação (revelação das razões de fato e de direito que justifiquem a decisão, que se torna vinculante da administração), a cada caso;

    (vii) reservar, para momento posterior à fase de julgamento de propostas, a verificação do atendimento aos requisitos de habilitação que propiciem a contratação do proponente classificado em primeiro lugar ou impliquem sua inabilitação para contratar;

    (viii) explicitação dos recursos administrativos cabíveis contra as decisões proferidas na fase de julgamento de propostas e de requisitos de habilitação, indicando os níveis hierárquicos que participam de sua recepção e julgamento, em prazo razoável e sem eficácia suspensiva;

    (ix) informatização de todos os procedimentos competitivos, com acesso universal garantido a todos os segmentos do mercado interessados no objeto da contratação e ao particular que pretenda exercer o direito constitucional de representação aos poderes públicos;        

    (x) regramento específico para a instrução dos processos de contratação que se possam aperfeiçoar sem licitação, em caráter excepcional, para o que de grande valia será a elaboração de manuais operacionais que correspondam às peculiaridades da estrutura organizacional de cada departamento administrativo provido de autonomia de gestão;

    (xi) deixar expresso, em ato convocatório e em cláusula contratual, que a pandemia constitui, no plano conceitual, álea extraordinária universal, a autorizar a revisão do contrato para restaurar-lhe o equilíbrio econômico-financeiro rompido, desde que tal rompimento resulte demonstrado a cada contrato, não bastando, destarte, a só invocação de álea extraordinária para autorizar a modificação de cláusulas econômico-financeiras e de serviços.

     

     

    *Jessé Torres Pereira Junior. Desembargador. Conferencista emérito da Escola da Magistratura    do Estado do Rio de Janeiro e professor-coordenador de seus cursos de pós-graduação em direito administrativo. Professor convidado da Fundação Getúlio Vargas – RJ e da Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ. Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros.