Opinião

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    O ACESSO A FUNÇÕES PÚBLICAS

     

     

    *Marinês Restelatto Dotti

     

     

     

    No Brasil, o caráter particularista do processo colonizador pelos europeus absorveu o modelo de administração pública portuguesa na forma de ver o Estado como extensão das famílias dominantes. Poderes locais se sobressaíam pulverizando as funções administrativas entre parentes e apadrinhados que viviam ao redor dos senhores proprietários de terra. A Constituição Imperial (1824), em seu art. 179, XIV, limita-se a orientar que todo o cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos ou militares, sem outra diferença que não seja a dos seus talentos e virtudes. A Constituição Republicana de 1934 (art. 170, §2º) determinava a realização de concurso público em caráter específico para situações especiais. As sucessivas Constituições de 1937 e 1946 repetiram a fórmula da Carta de 1934. Foi na Carta de 1967 que surgiu a exigência do concurso público para o acesso a todos os cargos e empregos públicos mediante concurso público. Não logrou êxito, no entanto, este impulso moralizador, tendo a Carta de 1969 (art. 97) retomado a questão aos moldes anteriores.

    Com a redemocratização do país e com a exigência precípua de atingir a qualidade esperada pela sociedade como prestador de serviços e empregador, percebeu-se que era preciso dotar o Estado de um quadro permanente de servidores concursados, não sujeitos às ingerências políticas, cujo princípio do mérito fosse o critério basilar para que os cidadãos fossem investidos em cargos públicos. Estabeleceu, assim, o constituinte de 1988, o ingresso em cargo e emprego público por meio de concurso, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (art. 37, incisos I e II).

    A realização de concurso público é instrumento de efetivação dos princípios da igualdade, da impessoalidade e da moralidade administrativa, por meio do qual: (a) aferem-se aptidões necessárias aos ocupantes de cargos e empregos públicos na administração pública; (b) privilegia-se o sistema de mérito; (c) proporciona-se aos interessados participarem do certame em igualdade de condições; (d) selecionam-se os candidatos mais aptos a firmarem a relação jurídica estatutária ou laboral conforme o vínculo a ser encetado; e (e) afasta-se a prática ilegítima do nepotismo.

    A ideia da meritocracia trazida pela administração pública burocrática e que permaneceu como característica da administração pública gerencial contrapõe-se ao fisiologismo, ao clientelismo, à patronagem e ao nepotismo, pois afirma que as pessoas devem ocupar cargos e empregos públicos em decorrência de características racionais, ou seja, pela criteriosa aferição de conhecimento técnico e habilidades, em igualdade de condições.

    Raquel Carvalho (Concurso público: importância, execução indireta e artigo 24, XIII, da Lei 8.666 Ou ... Como escolher parasitas) ensina que por meio da realização de concurso público reduzem-se os riscos de discriminações ilícitas, dos apadrinhamentos clientelistas que ocorrem através de indicações exclusivamente políticas; combate-se a cultura do empreguismo e do exercício de cargo como um favor que merece retribuição política; rompe-se com o risco de alta rotatividade no quadro de pessoal que precisa de continuidade técnica no exercício de atividades permanentes que exigem memória e competência adquirida pelo exercício; busca-se uma blindagem em face dos chamados “trens da alegria”, ainda comuns na realidade administrativa contemporânea; e evitam-se critérios desproporcionais que significam favores e privilégios de alguns interessados em desfavor de outros candidatos, muitas vezes mais capacitados para o exercício da função pública.

    A realização de concurso público democratiza o acesso às funções públicas àqueles que não contam com o amparo dos poderosos capazes de conseguir cargos ou empregos sem maiores esforços, além de afastar a famigerada prática denominada de “rachadinha”, por meio da qual se insere um agente sem vínculo com a administração para exercer função pública, ou seja, sem concurso, de cujo bolso é extraída parcela da remuneração, constituindo-se num meio de vida para alguns e modo de fazer negócios para outros. Os nomeados sem vínculo estão permanentemente preocupados em se evadir da livre exoneração a que estão sujeitos. Essa preocupação (ou medo) constante pode ser a razão pela qual se tornam manipuláveis à vontade de seus superiores, de cuja boa vontade depende sua permanência, pelo que geralmente são proclives a satisfazer-lhes os propósitos, ainda quando incorretos, além disso, são indivíduos alheios aos freios que resultam do compromisso com sua carreira.

    Otero[1], administrativista português, anota que:

    Não se encontra isenta uma Administração Pública legitimada democraticamente, todavia, de um fenómeno de politização ou colonização administrativa pelos partidos políticos: a intervenção dos partidos políticos fazendo de quase toda a máquina administrativa um palco da luta hegemónica do “Estado do partido governamental” (v. supra, nº 6.1.2), além de gerar um domínio informal das estruturas administrativas (v. supra, nº 6.5.2), determina também uma infiltração no próprio aparelho administrativo de boys ou fidèles du gouvernement que, alimentando nomeações políticas quase sempre sem especiais habilitações científicas ou qualificações técnicas, tendem a valorizar um vínculo político em detrimento do relacionamento jurídico-institucional e a provocar uma transferência do centro decisório dos gabinetes administrativos para as salas dos directórios partidários.

     

    Ouve-se que os servidores públicos são pouco operosos e que os cargos de liderança e assessoramento, de livre nomeação e exoneração, trazem ou trarão energia nova e compromisso. Em verdade, a perspectiva de “carregar o piano” para o júbilo e gáudio do líder ou assessor recém-chegado e que, via de regra, pouco conhece da rotina do trabalho que lhe cabe liderar ou assessorar, constitui um dos principais fatores de desmotivação dos servidores públicos concursados, conhecedores das regras e rotinas operacionais, dotados de memória institucional e desejosos em progredir na carreira. Fazer incorporar padrões elevados de conduta pela administração pública para orientar o comportamento dos agentes públicos constitui diretriz de governança pública, mas isso acontecerá se todos estiverem engajados no desenvolvimento da organização, liderados por agentes qualificados e com expertises técnicas consolidadas.

    No Brasil contemporâneo, as relações patrimonialistas não foram completamente superadas. As origens da tradição de favorecimento de amigos ou parentes no processo de seleção para cargos públicos são encontradas no decurso de formação do Estado brasileiro. A primazia do modelo patriarcal de família e a manutenção das relações patrimonialistas na gestão da coisa pública explicam a perpetuação desse comportamento, que viola o postulado republicano e a democracia. Um processo eficiente e eficaz de profissionalização na administração pública deve reduzir, mais e mais, o espaço para a escolha de indivíduos despreparados, afastando os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de agentes que se alçam e se mantém no poder leiloando cargos públicos. Se estes são utilizados como moeda de troca em transações políticas não exatamente republicanas, faz-se necessário reduzir as posições de livre nomeação e incrementar o acesso e a ascensão a elas por critérios de mérito na administração pública.

     


    [1] OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública – O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina. 3 ed., 2011, p. 294.

     

     

     

    Marinês Restelatto Dotti. Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora da obra: Governança nas contratações públicas: aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência. Currículo: http://lattes.cnpq.br/