*Jaqueline Wichineski dos Santos
Introdução
As disposições da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, a nova lei de licitações, estão causando alvoroço nas esferas pública e privada. No tocante à primeira, a pública, as questões dizem respeito à sua adequação no período de dois anos, emergindo dúvidas acerca da legislação a aplicar, com destaque à impossibilidade de utilizar-se modelo híbrido, ou seja, a adoção da nova legislação afasta o regime jurídico anterior. Quanto à segunda, a privada, os efeitos localizam-se exatamente na dúvida quanto à legislação que será adotada pela esfera pública e a incipiente instrumentalização de suas normas, causando insegurança à gestão de seus negócios.
A Lei nº 14.133/2021 postergou até 1º de abril de 2023 a revogação da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, da Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, a lei do pregão, e dos artigos 1º a 47 da Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC. Nesses dois anos irão coexistir diversos diplomas legais regulando licitações públicas, sobressaindo-se a discricionariedade do gestor público quanto à opção do regime licitatório a seguir, o que causará embaraços jurídicos.
A Lei nº 8666/1993, conhecida como a lei geral de licitações e contratos, publicada cinco anos após a Constituição Federal de 1988, vinha ajustando-se aos instrumentos jurídicos para sua própria regulamentação, perdurando assim por quase trinta anos. Necessitava-se de mudanças, pois os cenários público e econômico atuais são diversos dos anteriores, exigindo-se evolução e aperfeiçoamento, principalmente no aspecto procedimental, na aplicação da lei anticorrupção, regras de “compliance” e princípio da transparência.
A nova legislação revigorou princípios constitucionais em vários de seus dispositivos, bem como e, fortemente, o entendimento jurisprudencial dos Tribunais Judiciais dos Estados, Superior Tribunal de Justiça, Supremo Tribunal Federal, Tribunal de Contas da União e Tribunais de Contas dos Estados, por meio de seus atos normativos, orientações, decisões e acórdãos.
Numa visão mais otimista, econômico-financeira para as empresas - e aqui trataremos de obras e serviços de engenharia, envolvendo o seguro- garantia, - a nova legislação, além dos princípios já imperativos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, com ênfase na transparência, trouxe a novidade do planejamento e da segurança jurídica. Em seus dispositivos encampou o programa de integridade, código de conduta e ética e responsabilidade civil do agente público, com consequências que causam arrepio aos procuradores quando da elaboração de suas manifestações jurídicas a respeito da legalidade do processo de contratação.
Aspectos relevantes e preocupantes especificamente analisados pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul - TCE/RS, sobre licitações envolventes de contratações de obras e serviços de engenharia e os graves problemas com as empresas contratadas, geradores de milhões de prejuízos ao erário, serão vistos a seguir [1].
O TCE/RS efetuou pesquisa acerca da situação de obras suspensas ou paralisadas em órgãos e entidades municipais e estaduais, com valores superiores a R$1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), iniciadas a partir do ano de 2009 e, ainda, em convênios vigentes. No âmbito estadual, os órgãos mais representativos foram: secretarias de obras públicas e de educação e Superintendência dos Serviços Penitenciários no Estado do Rio Grande do Sul – SUSEPE. Juntos, respondem por 71,44% das obras informadas. Fontes de recursos em valores absolutos, o montante financeiro de contratos de financiamento corresponde a R$37.246.542,65 (trinta e sete milhões, duzentos e quarenta e seis mil, quinhentos e quarenta e dois reais e sessenta e cinco centavos), equivalente a 39,44% do total de recursos disponibilizados. A utilização de recursos próprios totaliza a cifra de R$28.406.225,32 (vinte e oito milhões, quatrocentos e seis mil, duzentos e vinte e cinco reais e trinta e dois centavos), equivalente a 30,08% dos recursos disponibilizados. Conforme conclusão do TCE/RS, há dados preocupantes da má gestão pública, com reflexos no erário, causando mais dívidas se não geridas conforme diretrizes orçamentárias, imputando, também, crime de responsabilidade fiscal.
Atinentes às paralizações, destacam-se os principais motivos levantados: descumprimento de especificações técnicas, questões técnicas conhecidas após a licitação, discussão de aditivos motivada por questões técnicas, irregularidades decorrentes de problemas afetos ao meio ambiente, contingenciamento de recursos próprios, não comprovação da garantia exigida no contrato, atraso de pagamento da primeira fatura, obra paralisada aguardando execução de aterro (CT 118/17 CORSAN) e elaboração de termo aditivo de riscos decorrentes de erros e vícios construtivos.
Neste cenário preocupante de gastos expressivos e rombo no erário, surge com mais força o seguro-garantia de obras e serviços de engenharia, execução de contratos e responsabilidade civil e aqui cabe uma distinção de que não se trata da garantia de proposta no início do procedimento prevista no art. 58 e §1°do art. 96 da Lei nº 14133/2021, verbis:
Art. 58. Poderá ser exigida, no momento da apresentação da proposta, a comprovação do recolhimento de quantia a título de garantia de proposta, como requisito de pré-habilitação.
§ 1º A garantia de proposta não poderá ser superior a 1% (um por cento) do valor estimado para a contratação.
§ 2º A garantia de proposta será devolvida aos licitantes no prazo de 10 (dez) dias úteis, contado da assinatura do contrato ou da data em que for declarada fracassada a licitação.
§ 3º Implicará execução do valor integral da garantia de proposta a recusa em assinar o contrato ou a não apresentação dos documentos para a contratação.
§ 4º A garantia de proposta poderá ser prestada nas modalidades de que trata o § 1º do art. 96 desta Lei.
[...]
Art. 96. A critério da autoridade competente, em cada caso, poderá ser exigida, mediante previsão no edital, prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e fornecimentos.
§ 1º Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia:
I - caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil, e avaliados por seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Economia;
II - seguro-garantia;
III - fiança bancária emitida por banco ou instituição financeira devidamente autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil.
Mas sim, das garantias previstas a partir do art. 96, §1°, inciso II, e em vários outros dispositivos que tratam da chamada “matriz de risco”, como uma novidade na definição “ipis litteris”: “cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, a listagem de eventos supervenientes a assinatura do contrato; previsão por tipo contratual de termos aditivos por ocasião de ocorrência; e diversas obrigações contratuais.
Nesta toada, tanto o órgão público quanto a empresa privada, ou seja, empresa que tem interesse no certame licitatório ou na contratação direta, necessitam atualizar-se e, ainda, de assessoramento técnico especializado no assunto, para buscar no mercado segurador apólices que atendam suas necessidades, garantidoras de riscos em decorrência da execução de obras e serviços de engenharia. Importante frisar, que na nova lei de licitações, notadamente nas contratações de obras, serviços e fornecimentos, a garantia poderá ser de até 5% (cinco por cento) do valor inicial do contrato, autorizada a majoração desse percentual para até 10% (dez por cento), desde que justificada mediante análise da complexidade técnica e dos riscos envolvidos.
Em razão de elevado percentual de obras paralisadas devido a problemas financeiros na execução do contrato, foi estabelecido na nova lei de licitações que nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto, poderá ser exigida a prestação de garantia, na modalidade seguro-garantia, em percentual equivalente a até 30% (trinta por cento) do valor inicial do contrato, com cláusula de retomada denominada, nos EUA, de “step-in” (a seguradora pisa dentro), evitando-se, desta forma, “elefantes brancos”, ou seja, a ineficiência do Estado e o dispêndio de recursos públicos.
Feitas essas considerações sobre o cenário da legislação, problemas na contratação e prejuízos vultosos ao erário, passa-se a pontuar aspectos importantes e relevantes no âmbito dos seguros, esclarecendo um pouco de sua complexidade e de que forma apresenta-se na nova lei de licitações.
Seguros
Os seguros fazem parte do cotidiano das contratações e estão presentes nas mais diversas situações da vida social, desde a locação de um veículo, compra de um automóvel ou imóvel, até situações mais complexas, como, por exemplo, a construção de uma usina hidrelétrica, uma barragem, uma ponte ou uma linha de metrô. No âmbito empresarial e comercial são indispensáveis para obtenção de crédito e atividades tais como: financiamentos, investimentos, ingresso e permanência na bolsa de valores, participação e concorrência.
A regulação do mercado de seguros encontra precedente na Constituição Federal, no art. 192, verbis:
O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
As companhias de seguro devem obter autorização prévia governamental para operar e pautar suas ações pelas leis básicas do setor (Decreto-Lei n°73, de 21 de novembro de 1966, regulado pelo Decreto n° 60.459, de 13 de março de 1967, Códigos Civil e Comercial e regulamentos emitidos pelos órgãos reguladores estatais).
O sistema de regulação consiste no Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), colegiado normativo do setor, presidido pelo Ministro da Economia; na Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), responsável pelo controle e fiscalização dos mercados de seguro (exceto seguro saúde), previdência privada aberta e capitalização e na Agência Nacional de Saúde - ANS, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde e criada com o objetivo de controle e fiscalização do seguro saúde.
Ainda no aspecto legislativo, o art. 757 do Código Civil prevê um conceito moderno de contrato de seguro. Assim:
Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.
Parágrafo único. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada.
Pelo contrato de seguro, o segurador obriga-se mediante o pagamento do prêmio a garantir interesse legítimo do segurado relativo à pessoa ou a coisa contra riscos pré-determinados. Somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada e que, no caso, seriam as obras e serviços discriminados no art. 2º da Lei nº 14.133/2021.
Assim, o objeto imediato ou causa do seguro passa a ser a garantia. A seguradora obriga-se a garantir o interesse legítimo do segurado, havendo, pois, não só o esclarecimento de que a garantia é núcleo do contrato, mas também, de que a identificação do credor da garantia se dá pela investigação da titularidade do interesse garantido [2].
Segundo o art. 779 do Código Civil, que incide sobre o seguro-garantia, "o risco do seguro compreende todos os prejuízos resultantes ou consequentes, como sejam os estragos ocasionados para evitar o sinistro, minorar o dano ou salvar a coisa".
No Brasil, o mercado segurador regulamentado e fiscalizado pela SUSEP, apresentou crescimento, nos últimos anos, do Produto Interno Bruto (PIB), melhorando a participação na indústria de seguros, que ultrapassa 6,7% do PIB, retornando mais de R$315 (trezentos e quinze bilhões) para a sociedade.
No que diz respeito aos seguros no âmbito de riscos de engenharia, e que com a nova lei de licitações, “trouxe à baila”, com mais força, e que bem destacado neste material que trata da análise de risco e matriz de risco, mesmo que a garantia do seguro seja uma opção entre as garantias trazidas pela lei, houve uma mudança significativa e madura para melhor avaliar e precaver os riscos.
Análise de risco e matriz de risco
A nova lei de licitações é, como já vem sendo visto, bastante didática em relação às definições de alguns termos, sobretudo àqueles descritos ao longo do art. 6º, como no caso da matriz de riscos, por exemplo, cujo inciso XXVII a descreve como sendo a cláusula contratual definidora dos riscos e das responsabilidades entre as partes, caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, caso ocorram eventos supervenientes. Em outras palavras, significa dizer que a análise de riscos é a identificação e prescrição dos possíveis riscos de determinada obra ou serviço, enquanto a matriz já serve como uma espécie de “distribuição” destes riscos entre as partes envolvidas [3].
A referida definição de matriz de risco no dispositivo da lei acima citado ainda traz a necessidade desta cláusula conter algumas delimitações, sendo elas:
a) listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato que possam causar impacto em seu equilíbrio econômico-financeiro e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo por ocasião de sua ocorrência;
b) no caso de obrigações de resultado, estabelecimento das frações do objeto com relação às quais haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, em termos de modificação das soluções previamente delineadas no anteprojeto ou no projeto básico;
c) no caso de obrigações de meio, estabelecimento preciso das frações do objeto com relação às quais não haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, devendo haver obrigação de aderência entre a execução e a solução predefinida no anteprojeto ou no projeto básico, consideradas as características do regime de execução no caso de obras e serviços de engenharia;
Corroborando com as definições da Lei, cumpre mencionar os ensinamentos de Hamilton Bonatto [4] a respeito do assunto, o qual já descreveu que as contratações implicam no deslocamento de alguns riscos do contrato de obras e serviços de engenharia à empresa contratada, decorrentes das especificidades de cada projeto em si.
Ainda no texto da nova lei de licitações, o art. 22 apresenta definições sobre a matriz de risco no que tange ao edital:
Art. 22. O edital poderá contemplar matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado, hipótese em que o cálculo do valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e com os riscos atribuídos ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pelo ente federativo.
O parágrafo primeiro do dispositivo mencionado determina que a matriz de risco deve estabelecer a responsabilidade de cada uma das partes, bem como os mecanismos que afastem a ocorrência do sinistro e mitiguem os seus efeitos, caso este ocorra durante a execução do objeto contratual. Como dito no início do tópico, trata-se da “distribuição” de riscos entre as partes. O parágrafo segundo, por sua vez, determina que o contrato deverá realizar a alocação pela matriz de riscos quanto: (i) às hipóteses de alteração para o restabelecimento da equação econômico-financeira do contrato nos casos em que o sinistro seja considerado na matriz de riscos como causa de desequilíbrio não suportada pela parte que pretenda o restabelecimento; (ii) à possibilidade de resolução quando o sinistro majorar excessivamente ou impedir a continuidade da execução contratual; e (iii) à contratação de seguros obrigatórios previamente definidos no contrato, integrado o custo de contratação ao preço ofertado.
Por fim, cumpre trazer a conhecimento as determinações do parágrafo terceiro do mesmo art. 22:
[…] § 3º Quando a contratação se referir a obras e serviços de grande vulto ou forem adotados os regimes de contratação integrada e semi-integrada, o edital obrigatoriamente contemplará matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado.
Consoante se vê, este dispositivo determina os parâmetros para que haja previsão obrigatória no edital no que tange à matriz de alocação de riscos entre o contratante e o contratado. Além do art. 22, o art. 103 contempla a alocação de risco nos contratos administrativos, devendo ser indicados os riscos assumidos pelo Poder Público, pelo contratado e quais deverão ser compartilhados (art. 103, caput).
Art. 103. O contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, alocando-os entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados.
§ 1º. A alocação de riscos de que trata o caput deste artigo considerará, em compatibilidade com as obrigações e os encargos atribuídos às partes no contrato, a natureza do risco, o beneficiário das prestações a que se vincula e a capacidade de cada setor para melhor gerenciá-lo.
§ 2º. Os riscos que tenham cobertura oferecida por seguradoras serão preferencialmente transferidos ao contratado.
§ 3º. A alocação dos riscos contratuais será quantificada para fins de projeção dos reflexos de seus custos no valor estimado da contratação.
§ 4º. A matriz de alocação de riscos definirá o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em relação a eventos supervenientes e deverá ser observada na solução de eventuais pleitos das partes.
§ 5º. Sempre que atendidas as condições do contrato e da matriz de alocação de riscos, será considerado mantido o equilíbrio econômico-financeiro, renunciando as partes aos pedidos de restabelecimento do equilíbrio relacionados aos riscos assumidos, exceto no que se refere:
I - às alterações unilaterais determinadas pela Administração, nas hipóteses do inciso I do caput do art. 124 desta Lei;
II - ao aumento ou à redução, por legislação superveniente, dos tributos diretamente pagos pelo contratado em decorrência do contrato.
§ 6º. Na alocação de que trata o caput deste artigo, poderão ser adotados métodos e padrões usualmente utilizados por entidades públicas e privadas, e os ministérios e secretarias supervisores dos órgãos e das entidades da Administração Pública poderão definir os parâmetros e o detalhamento dos procedimentos necessários a sua identificação, alocação e quantificação financeira.
Como todo contrato possui uma determinada alocação de riscos, o dispositivo se refere à matriz de risco, considerada como uma cláusula específica, destinada a formalizar a alocação de riscos. A execução contratual envolve riscos e responsabilidades cujos ônus, extensão e obrigação são variáveis e dependem das circunstâncias e dos eventos supervenientes. Transferir riscos para o contratado pode acarretar relevante efeito econômico a depender da situação. Mesmo que ausente a ocorrência do evento danoso o sujeito será remunerado pela assunção do risco. (§§ 3º e 4º)
No âmbito das contratações administrativas, a definição precisa das obrigações, responsabilidades e riscos atribuídos ao sujeito privado permitirá aos interessados formularem propostas que assegurem a execução satisfatória do empreendimento, mediante o recebimento de remuneração adequada. Isso assegurará à administração a obtenção de preço mais vantajoso possível.
Seguro-garantia
A nova lei de licitações, diferentemente da Lei nº 8.666/1993, trouxe mudanças significativas ao seguro-garantia que é o “seguro que garante o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo contratado”, nos termos do inciso LIV do art. 6° da Lei. Seu objeto não pode ser outro senão aquele especificado de forma clara no inciso XI do mesmo dispositivo.
Já o art. 96, caput, prevê que a administração pública poderá exigir, discricionariamente, a comprovação de garantia (“A critério da autoridade competente, poderá ser exigida, garantia ....”), enquanto o parágrafo primeiro faculta ao contratado escolher a garantia entre as previstas na Lei, entre elas o seguro-garantia. No caso de obras de engenharia de grande vulto, nos termos da lei (art. 6º, inciso XXII), são as de valor igual ou superior a R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais).
No concernente ao art. 98, estabelece que:
Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos, a garantia poderá ser de até 5% (cinco por cento) do valor inicial do contrato, autorizada a majoração desse percentual para até 10% (dez por cento), desde que justificada mediante análise da complexidade técnica e dos riscos envolvidos.
Essa disposição é substancialmente igual aos §§2º e 3º do art. 56 da Lei nº 8.666/1993, verbis:
Art. 56. A critério da autoridade competente, em cada caso, e desde que prevista no instrumento convocatório, poderá ser exigida prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e compras.
§ 1º Caberá ao contratado optar por uma das seguintes modalidades de garantia:
I - caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública, devendo estes ter sido emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil e avaliados pelos seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Fazenda;
II - seguro-garantia;
III - fiança bancária.
No tocante ao art. 99 da Lei nº 14.133/2021, encontra-se, novamente, a ideia de exigência verificada no caput do art. 96, entretanto, com mais força preceitua:
Nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto poderá ser exigida a prestação de garantia, na modalidade seguro-garantia com cláusula de retomada prevista no artigo 102 desta lei, em percentual equivalente a 30% (trinta por cento) do valor inicial do contrato.
Na visão do jurista e doutrinador Ernesto Tzirulnik, há duas possíveis interpretações: a) a regra apenas especifica que, caso a garantia escolhida pelo contratado for o seguro, esse seguro, em tais obras, deve conter a cláusula de retomada — que no seguro é conhecida como cláusula de reposição ou step in ou b) que a administração contratante pode escolher o seguro-garantia em detrimento da faculdade de escolha do administrado. A primeira interpretação fica confortável com a vírgula que antecede e a que sucede a expressão "na modalidade seguro-garantia" e com o discurso de liberdade econômica, assim como uma interpretação sistemática com o art. 96, § 1º, e o princípio de interpretação “in dubio pro administrado”.
A segunda interpretação baseia-se no fato de que não faria sentido o legislador desequilibrar a balança das garantias, exigindo seguro "parrudo" (30% e com cláusula de reposição obrigatória ou "retomada" — art. 99) e fiança e caução esbeltas (5 a 10% — art. 98). Além disso, tratando-se de obra de grande vulto, haveria de prevalecer uma interpretação teleológica, segundo a qual a administração pode optar por uma garantia essencialmente diferente em razão do interesse público. Entre a liberdade econômica do particular e o interesse público, este deve prevalecer. Daí a radical configuração do seguro-garantia, em geral visto como uma garantia superior às outras quando oferecida nas mesmas condições. Em vez de poder exigir garantia de apenas 10% do valor em risco a ser recebido em dinheiro, a importância segurada pode ser de até quase um terço do valor em risco com possibilidade de execução específica do garantidor. Esta segunda posição parece ser juridicamente correta [5].
Outro ponto relevante, é a previsibilidade da cláusula de retomada ou “step-in right” (a seguradora pisa dentro), prevista no art. 102, inciso III, da Lei nº 14.133/2021:
Art. 102. Na contratação de obras e serviços de engenharia, o edital poderá exigir a prestação da garantia na modalidade seguro-garantia e prever a obrigação de a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assumir a execução e concluir o objeto do contrato, hipótese em que: [...] III - a seguradora poderá subcontratar a conclusão do contrato, total ou parcialmente.
Neste aspecto não foi adequada a redação desse dispositivo, na melhor técnica dos seguros, pois prevê que a seguradora poderá subcontratar o serviço total ou parcialmente. A seguradora deve atender à garantia de riscos e pagar indenizações, sua atividade principal não pode ser a de executante de obra.
Importante frisar, que tal regulamentação encontra previsão na Circular 477/2013 da SUSEP (que dispõe sobre seguro garantia e divulga condições padronizadas), a qual estabelece em seu art. 13 [6] que:
A seguradora indenizará o segurado, mediante acordo entre as partes, segundo uma das formas abaixo:
I- Realizando, por meio de terceiros, o objeto do contrato principal, de forma a lhe dar continuidade, sob a sua integral responsabilidade e/ou;
II- Indenizando, mediante pagamento em dinheiro, os prejuízos e/ou multas causadas pela inadimplência do tomador, cobertos pela apólice.
§1° no caso de rescisão do contrato principal, todos os saldos de créditos do tomador no contrato principal serão utilizados na amortização do prejuízo e/ou na multa objeto da reclamação do sinistro, sem prejuízo do pagamento da indenização no prazo devido.
§2°caso a indenização já tenha sido paga quando da conclusão da apuração dos saldos de crédito do tomador no contrato principal, o segurado obriga-se a devolver a seguradora qualquer excesso que lhe tenha sido pago.
A interpretação razoável é a de que não são exatamente subcontratados, pois ela (a seguradora) não pode ser propriamente contratada para os serviços de empreitada, por exemplo. São meios de pagamento. A interpretação a ser feita sobre o inciso III é a da possibilidade de que a seguradora subcontrate parte do necessário à conclusão do contrato junto a sujeitos distintos, agindo como coordenadora da conclusão.
Para concluir o tópico seguro-garantia, importante ressaltar que o art. 191 da Lei nº 14.133/1991 dispõe que até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com a nova lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso (Lei nº 8.666/1993, Lei nº 10.520/2002 e Lei nº 12.462/2011), e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada da nova lei com as citadas no referido inciso. Na hipótese de opção pela nova legislação, a incidência da exigência de seguro-garantia com cláusula de retomada, o piso mínimo de 1% ou 5% ou 10% a 30% será em relação ao valor da obra.
Diante de todo o cenário público, econômico e de controle externo apresentado e, principalmente, no que diz respeito aos excessivos gastos pela falta de gestão pública, como demonstrado no estudo realizado pelo TCE/RS, é possível observar que não apenas nas licitações envolvendo obras de grande vulto evidenciam-se problemas. Estes também são expressivos em obras de valores abaixo de R$1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais), que, ao “fim e ao cabo”, oneram o erário, recaindo a conta sobre a sociedade.
Diante dessas considerações passa-se a refletir se em lugar de o órgão público ter o estrito cumprimento da legislação e se utilizar do seguro-garantia de obras e serviços de engenharia apenas para grandes vultos, deveria considerar, pelo péssimo histórico de má gestão, por consequência, inúmeros aditivos contratuais para que a obra tenha seu término e entrega à sociedade com qualidade e efetividade, a verdadeira prestação adequada, a contratação de seguro também para valores inferiores, como, por exemplo, os demonstrados pelo estudo do TCE/RS.
Contudo, há necessidade de amadurecimento do mercado, tanto por parte do órgão público em conhecer o seguro-garantia e como funciona pois, não há cultura de seguros no Brasil, principalmente a responsabilidade civil, oposto do que se vê nos EUA.
Às seguradoras devem adaptar-se às coberturas securitárias para este novo mercado, com exigências, cláusulas claras, abrangentes e precificações que não inviabilizem a contratação, pois as vantagens são inúmeras ao Poder Público, concedendo à seguradora, que possui políticas de “compliance” e “expertise” no mercado, a avaliação das empresas idôneas para o cumprimento do objeto contratual.
Por fim, não menos importante, as empresas deverão adequar-se a um novo ciclo, correlacionado à abrangência de seus negócios, atenção para as normas de conduta, contratação de corretores de seguro qualificados para atenderem tais necessidades de garantias de riscos e análise de custos, pois uma carta de fiança bancária, por exemplo, por vezes é mais onerosa que o seguro-garantia, sem falar no endividamento junto à instituição, prejudicando fluxo financeiro da empresa.
[1 ]
http://portal.tce.rs.gov.br/portal/page/portal/noticias_internet/Relatorios/Relatorio_obras_suspensas_paralisadas_novo.pdf
[2] TZIRULNIK, Ernesto. O contrato de seguro – de acordo com o novo Código Civil brasileiro. 2ªed.São Paulo:Revista dos Tribunais, 2003,p.30.
[3] https://www.federasul.com.br/divisaojuridica/infraestrutura/
[4] BONATTO, Hamilton. Governança e Gestão de obras públicas: do planejamento à pós-ocupação. Belo Horizonte. Fórum, 2018, página 543.
[5] https://www.conjur.com.br/2021-jun-14/tzirulnik-seguro-regime-garantias-lei-licitacoes
[6] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/circular-n-477-de-30-de-setembro-de-2013-31065813
*Jaqueline Wichineski dos Santos. Advogada. Parecerista. Especialização Pós-Graduação em Direito de Seguros, pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Pós-Graduação em Processo Civil e Direito Civil, pela FMP. Diretora Jurídica do Observatório Social do Brasil-Cachoeirinha. Membro da CESPC OAB/RS (Comissão Especial de Seguros e Previdência Complementar). Membro do Comitê de análise, da CESPC OAB/RS, projeto de Lei PL29/17. Membro da AIDA BRASIL (Associação Internacional de Direito de Seguros). Membro do GT de Processo Civil da AIDA BRASIL. Membro da Divisão Jurídica da FEDERASUL RS. Coordenadora Adjunta da Comissão de Seguros da FEDERASUL RS. Membro da Comissão da Mulher Advogada OAB/RS. Experiência na área de Direito Civil, com ênfase em Direito de Seguros, Direito Empresarial, Direito Bancário. Professora de Pós-Graduação. Professora e coordenadora dos cursos de seguros da Escola Superior da Advocacia OAB/RS. Palestrante, possui vários artigos em Direito dos Seguros, e outros na área Cível.