Opinião

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    MEDIDA PROVISÓRIA QUE PRORROGOU O PRAZO DE EFICÁCIA DE LEGISLAÇÃO ANTERIOR À LEI Nº 14.133/2021

    *Jessé Torres Pereira Junior

     

    Sumário: 1. Introdução: vigência e eficácia de lei. 2. A extensão do prazo de eficácia da legislação anterior, na vigência da lei nova. 3. As premissas constitucionais da Medida Provisória alcançam licitações e contratações administrativas? 4. Peroração.

     

    1. Introdução: vigência e eficácia de lei

    Como definir, quanto à sua eficácia temporal, as leis hoje regentes de licitações e contratações administrativas brasileiras? É esse o objetivo que nos anima a discorrer, brevemente, sobre a Medida Provisória nº 1.167, de 31 de março de 2023, cuja ementa sintetiza que veio alterar “a Lei nº 14.133/2021, para prorrogar a possibilidade de uso da Lei nº 8.666/93, da Lei nº 10.520/2002 e dos artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011”.

    O primeiro passo é estabelecer a distinção entre eficácia e vigência de lei. Como as leis em geral arrematam seu corpo normativo com a regra de que “a presente lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”, é comum deduzir-se ser a data de publicação o momento a partir do qual a lei publicada inaugura nova ordem positiva na matéria sobre a qual dispõe, não mais se podendo aplicar a legislação revogada.

    Nem sempre é assim. Vigência e eficácia não são sinônimos perfeitos. A nova lei, embora se afirme vigente a partir da data de sua publicação, pode estabelecer prazo para que as normas que veio revogar permaneçam a produzir efeitos e ela, a nova lei, somente começará a produzir efeitos a partir de certo prazo. Ou seja, vigente a nova lei está com a publicação, mas ainda não se apresenta exigível a sua aplicação. É habitual que tal ocorra quando da edição de leis extensas, como o são os códigos, a exemplo do civil de 2002 e o de processo civil de 2015, que fixaram prazos de dois anos para que suas disposições substituíssem as normas do código civil e do código de processo civil anteriores, que, nesse biênio, continuaram a ser aplicadas.

    Quando se traça essa regra temporal no arremate da lei nova, esta vige a partir da data de sua publicação, mas só começa a ser eficaz ao fim daquele prazo em que a lei nova é conhecida, porque publicada, mas ainda não eficaz, porque há de aguardar o decurso do prazo estabelecido, durante o qual a legislação anterior ainda estará a produzir seus efeitos. O objetivo dessa medida legislativa é a de propiciar tempo de estudo para que estado e sociedade civil se preparem para a aplicação da nova extensa e complexa lei.

    O art. 191 da Lei nº 14.133/2021 assim fez, ao estabelecer um biênio, a partir de sua publicação (vigência), durante o qual a legislação até então regente das licitações e contratações administrativas pudesse continuar a ser aplicada (eficácia).     

    2. A extensão do prazo de eficácia da legislação anterior, na vigência da lei nova

    O art. 191 da Lei nº 14.133/2021 acrescentou a incomum faculdade de a Administração “optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso”.  O inciso referido, II do art. 193, estabelece quais as leis que estariam revogadas dois anos após a publicação da Lei nº 14.133/2021 – as Leis 8.666/93, 10.520/2002 e 12.462/2011.

    Faculdade incomum porque a lei nova tanto poderia ser aplicada, durante dois anos, imediatamente (vigência e eficácia), como também poderia deixar de ser aplicada (apenas vigência), para que as leis anteriores o fossem, de acordo com a escolha da administração em cada caso, desde que assim indicado nos respectivos editais de licitação ou nos atos de autorização de contratação sem licitação.

    Em outras palavras, a Lei nº 14.133/2021 deixou a critério da Administração, durante dois anos, reconhecer vigência e eficácia a si mesma, ou reconhecer apenas a vigência da lei nova e manter a eficácia da legislação anterior, desde que assim fosse discriminado em cada caso. Por evidente que o propósito era o de garantir prazo suficiente para que os agentes públicos se preparassem de modo suficiente e adequado para a aplicação da lei nova, ou já se sentissem habilitados a desde logo aplicar a lei nova, vedado que a lei nova e a legislação anterior pudessem ser combinadas na mesma licitação ou contratação. Ou seja: durante dois anos, em cada licitação e contratação, ou bem se aplicava a lei nova ou bem se aplicava a legislação anterior.

    3. As premissas constitucionais da Medida Provisória alcançam licitações e contratações administrativas?   

    A Medida Provisória nº 1.167, de 31.03.2023, trouxe inovação a esse cenário, qual seja a da prorrogação do biênio de vigência/eficácia da Lei nº 14.133/2021 e da legislação a ela anterior, regente das licitações e contratações administrativas. Trouxe nova redação ao indigitado art. 191, de modo a autorizar a Administração a optar entre um regime e outro desde que a publicação do edital ou do ato autorizativo da contratação direta ocorra até 29.12.2023. Ou seja, estendeu o prazo de opção, que terminaria aos 31.03.2023, para 29.12.2023, mantidas as demais condições fixadas na Lei 14.133/2021. Poderia fazê-lo?

    Decerto que no âmago dessa prorrogação do prazo de opção estão as dificuldades de ajustamento da administração pública às inúmeras novidades conceituais da Lei 14.133/2021, cuja aplicação exige visão multidisciplinar e adoção de princípios, conceitos e métodos tecnológicos nem sempre ao alcance de grande número dos mais de cinco mil municípios brasileiros. Daí se haver considerado a necessidade de dilatar o prazo bienal. As indagações que a prorrogação coloca são, ao menos: o novo prazo é bastante?; extensão de prazo se inclui entre as premissas constitucionais da Medida Provisória, a ponto de admitir que o Presidente da República se valesse dessa via para ditar a extensão?

    Quanto à suficiência da extensão do prazo, somente receberá resposta aos 29.12.2023. É de esperar-se que todos os entes federativos se empenhem para que consigam estar em condições satisfatórias de dar efetivo e completo cumprimento ao regime desenhado pela Lei nº 14.133/2021. Mas se dois anos não o foram, alguns meses mais o serão?

    O ponto de apoio para eventual resposta positiva estaria no art. 187 da Lei 14.133/2021, segundo o qual “Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão aplicar os regulamentos editados pela União para execução desta Lei”. O regime da nova lei, reitere-se, desafia a administração brasileira com princípios, conceitos e modernidade tecnológica cuja aplicação exige visão multi e inter disciplinar, que se espera venha a se estruturar e tornar-se gerencial e operacional mediante regulamentos, que tornarão mais evidentes os caminhos e vias de implantação no cotidiano da gestão das licitações e contratações. Ao que se sabe, a União, através de vários de seus órgãos, já expediu mais de cinquenta regulamentos aplicadores da Lei 14.133/2021. Estados e municípios poderão deles valer-se enquanto elaboram os seus próprios, caso necessários em razão da especificidade dos meios de cada ente federativo.  

    Quanto a se extensão de prazo de vigência e eficácia de lei ordinária se inclui entre as premissas constitucionais que autorizam a edição de Medida Provisória, repassemos o disposto no art. 62 da Constituição da República, com a redação da EC n°32/2001, segundo a qual “Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.

    A partir da Carta de 1988, o tema das licitações e contratações passou a ter assento constitucional expresso (v. artigos, 22, XXVII, 37, XXI, e 175), daí sua relevância. E a urgência está no fato de que o valor global dos contratos administrativos celebrados pela administração pública brasileira se aproxima, anualmente, de 10% do PIB, mobilizando milhares de pessoas físicas e jurídicas em sua execução, dentre e fora da administração estatal, em todos os níveis da federação.  

    4. Peroração

    Ao comentar o § 5º do aludido art. 62 da Constituição da República, que trata da atuação das Casas do Congresso Nacional no exame das medidas provisórias, comenta o Prof. Paulo Napoleão Nogueira da Silva (PUC/SP): “Pela natureza complexa e especialíssima da medida provisória, uma vez reconhecida nela a presença dos pressupostos constitucionais, dificilmente haverá o que considerar quanto ao seu mérito: presentes a relevância e urgência, nada mais haverá a discutir. Tal observação se aplica, também, ao disposto pelo § 5º; todavia, não se pode deixar de considerar os dois elementos básicos da atuação política, a conveniência e a oportunidade. Estes últimos, porém, pouco têm a ver com o jurídico”. (in Comentários à Constituição Federal de 1988, coord. Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura Agra. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009, pág. 1.031).

     

     

    * Jessé Torres Pereira Junior. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, conferencista emérito da Escola da Magistratura do TJRJ, presidente de seu Fórum Permanente de Gestão Pública Sustentável, Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, autor e coator de livros e artigos em matéria de direito público.