* Marinês Restelatto Dotti
1. Introdução
A Lei Complementar nº 182/2021 instituiu o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador. Uma de suas diretrizes é o incentivo à contratação, pela administração pública, de soluções inovadoras elaboradas ou desenvolvidas por entidades de direito privado (empresário individual, empresa individual de responsabilidade limitada, sociedade empresária, sociedade cooperativa e sociedade simples), para o fim de resolverem demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia e promoção de inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado.
São enquadradas como startups as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados. Para fins de aplicação da Lei Complementar, são elegíveis para o enquadramento na modalidade de tratamento especial destinada ao fomento de startup o empresário individual, a empresa individual de responsabilidade limitada, a sociedade empresária, a sociedade cooperativa e a sociedade simples: (a) com receita bruta de até R$ 16.000.000,00 (dezesseis milhões de reais) no ano-calendário anterior ou de R$ 1.333.334,00 (um milhão, trezentos e trinta e três mil trezentos e trinta e quatro reais) multiplicado pelo número de meses de atividade no ano-calendário anterior, quando inferior a 12 (doze) meses, independentemente da forma societária adotada; (b) com até 10 (dez) anos de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia; e (c) que atendam a um dos seguintes requisitos, no mínimo: i. declaração em seu ato constitutivo ou alterador e utilização de modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços, nos termos do inciso IV do caput do art. 2º da Lei nº 10.973/2004 (“inovação: introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho”); ou ii. enquadramento no regime especial Inova Simples, nos termos do art. 65-A da Lei Complementar nº 123/2006.
O Inova Simples constitui-se em regime especial simplificado que concede às iniciativas empresariais de caráter incremental ou disruptivo que se autodeclarem como empresas de inovação, tratamento diferenciado com vistas a estimular sua criação, formalização, desenvolvimento e consolidação como agentes indutores de avanços tecnológicos e de geração de emprego e renda.
2. Regime de licitações e contratações de startups
A administração pública direta, autárquica e fundacional de quaisquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando da contratação de startups, subordinam-se ao regime de licitações e contratações previstos na Lei Complementar nº 182/2021. Há, nesse diploma, apenas duas referências à aplicação da Lei nº 8.666/1993. A primeira, no art. 13, §8º, inciso I:
Art. 13
[...]
§ 8º Ressalvado o disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal, a administração pública poderá, mediante justificativa expressa, dispensar, no todo ou em parte:
I - a documentação de habilitação de que tratam os incisos I, II e III, bem como a regularidade fiscal prevista no inciso IV do caput do art. 27 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993;
E a segunda, no art. 15, §3º:
Art. 15
[...]§ 3º Os contratos de fornecimento serão limitados a 5 (cinco) vezes o valor máximo definido no § 2º do art. 14 desta Lei Complementar para o CPSI, incluídas as eventuais prorrogações, hipótese em que o limite poderá ser ultrapassado nos casos de reajuste de preços e dos acréscimos de que trata o § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Depreende-se, pois, que a Lei Complementar nº 182/2021 estabeleceu disciplina própria a respeito de licitações e contratações de soluções inovadoras pela administração pública. Em vista da indicação dos dispositivos específicos da Lei nº 8.666/1993, aplicáveis a essas contratações, extrai-se que esse diploma e, também, a Lei nº 14.133/2021 (nova lei de licitações) não são aplicáveis subsidiariamente.
3. Requisitos de habilitação
Destaque-se a obrigatoriedade de exigência de comprovação, nas licitações e contratações diretas, de que as startups encontram-se regular com a seguridade social, leia-se regularidade com o INSS e FGTS, por força do disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal (“A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios”), podendo ser dispensados os seguintes documentos de habilitação previstos na Lei nº 8.666/1993:
(a) habilitação jurídica;
(b) qualificação técnica;
(c) qualificação econômico-financeira;
(d) prova de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica - CNPJ;
(e) prova de inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual; e
(f) prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei.
A Lei Complementar nº 182/2021 faculta à administração pública, mediante justificativa expressa, dispensar, no todo ou em parte, os requisitos de habilitação previstos nos incisos I, II e III, do caput do art. 27 da Lei nº 8.666/1993, bem como a regularidade fiscal prevista no inciso IV, citados acima, de que se extrai que compete à administração pública, na fase interna ou preparatória da licitação (ou da contratação direta), definir/estabelecer os requisitos de habilitação que serão exigidos dos participantes do certame, como dados objetivos de comprovação das capacidades fiscal, técnica e econômico-financeira. A escolha desses dois últimos requisitos (qualificação técnica e de qualificação econômico-financeira) far-se-á caso a caso, em face das circunstâncias e peculiaridades do objeto e das necessidades que a administração pública deve realizar, guardada a devida proporcionalidade.
A análise da documentação relativa aos requisitos de habilitação será posterior à fase de julgamento das propostas e contemplará somente os proponentes selecionados.
3.1 Habilitação jurídica
O art. 13, §8º, inciso I, da Lei Complementar nº 182/2021, conferiu à administração pública a possibilidade de dispensar a comprovação da habilitação jurídica. Esta (habilitação jurídica), contudo, deve sempre ser exigida nas licitações, independentemente do regime jurídico de licitação, e, também, nas contratações diretas. Visa comprovar o regular registro e constituição do empresário individual, empresa individual de responsabilidade limitada, sociedade empresária, sociedade cooperativa e sociedade simples para o efeito de torná-los aptos a contrair obrigações e exercer direitos. Além disso, possibilita à comissão responsável pela condução da licitação (art. 13, §3º, da Lei Complementar) verificar se o ramo em que a startup atua é compatível com o objeto do certame ou da contratação e, ainda, se utiliza modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços, nos termos do inciso IV do caput do art. 2º da Lei nº 10.973/2004 (art. 4º, §1º, inciso III, alínea “a”, da Lei Complementar nº 182/2021).
3.2 Regularidade trabalhista
Dispõe o inciso IV do caput do art. 27 da Lei nº 8.666/1993, com redação dada pela Lei nº 12.440/2011, que:
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a: [...] IV – regularidade fiscal e trabalhista;
O inciso IV do caput do art. 27 da Lei nº 8.666/1993 não se refere, apenas, à comprovação da regularidade fiscal, mas, também, à comprovação da regularidade trabalhista, de sorte que a só previsão quanto à possibilidade de dispensa de comprovação da regularidade fiscal no art. 13, §8º, inciso I, da Lei Complementar nº 182/2021, exige que a startup comprove sua regularidade no âmbito trabalhista.
A inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho, que se comprova mediante a expedição de certidão negativa de débitos trabalhistas ou certidão positiva de débitos trabalhistas com efeito de negativa, passou a constituir, nos termos da Lei nº 12.440/2011, mais um requisito de habilitação nas licitações e contratações administrativas, na medida em que ao art. 27 da Lei nº 8.666/1993 foi acrescida, no inciso IV, a exigência de comprovação da regularidade trabalhista da pessoa jurídica interessada em contratar com a administração pública, passando o art. 29, inciso V, da mesma lei geral a ter a seguinte redação:
Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em:
[…] V - prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho, mediante a apresentação de certidão negativa, nos termos do Título VII-A da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943.
A função da certidão é a de comprovar a inexistência de débitos decorrentes da relação de trabalho, em correspondência ao direito social fundamental expresso nos artigos 6º e 7º da Constituição da República.
Prestação de garantia para a contratação
De acordo com o art. 13, §8º, inciso II, da Lei Complementar nº 182/2021, a administração pública poderá, mediante justificativa expressa, dispensar a prestação de garantia para a contratação. Ante o texto apresentado exsurge a seguinte dúvida: em vista de dita garantia encontrar-se em dispositivo próprio da Lei Complementar atinente a requisitos de habilitação (§8º do art. 13), trata-se de garantia de proposta ou de participação, equivalente à garantia prevista no art. 31, inciso III, da Lei nº 8.666/1993 (requisito de qualificação econômico-financeira, limitada a 1% do valor estimado do objeto, fixado no instrumento convocatório), ou se trata de garantia de execução contratual, em equiparação à garantia prevista no art. 56 da mesma Lei?
A Lei Complementar conferiu à administração pública a possibilidade de, mediante justificativa expressa, dispensar, no todo ou em parte, a documentação de habilitação de que trata o inciso III do caput do art. 27 da Lei nº 8.666/1993, referente à qualificação econômico-financeira. O art. 31 desse mesmo diploma elenca quais são esses documentos. Assim:
Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a:
I - balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e apresentados na forma da lei, que comprovem a boa situação financeira da empresa, vedada a sua substituição por balancetes ou balanços provisórios, podendo ser atualizados por índices oficiais quando encerrado há mais de 3 (três) meses da data de apresentação da proposta;
II - certidão negativa de falência ou concordata expedida pelo distribuidor da sede da pessoa jurídica, ou de execução patrimonial, expedida no domicílio da pessoa física;
III - garantia, nas mesmas modalidades e critérios previstos no "caput" e § 1o do art. 56 desta Lei, limitada a 1% (um por cento) do valor estimado do objeto da contratação. (grifei)
A garantia de proposta ou de participação traduz-se em requisito que visa atestar que a startup possui saúde financeira para participar do certame e, portanto, executar o contrato, garantia esta que integra documento de qualificação econômico-financeira previsto no art. 31, inciso III, c/c o inciso III do art. 27 da Lei nº 8.666/1993, cujo art. 13, §8º, inciso I, da Lei Complementar nº 182/2021, contemplou como documento dispensável, a critério da administração, desde que justificado expressamente. A dispensa de garantia prevista no inciso II do §8º do art. 13 da Lei Complementar nº 182/2021 não repetiria a dispensa de garantia já prevista no inciso I do mesmo §8º do art. 13, o qual faz remissão ao inciso III do art. 27 da Lei nº 8.666/1993, que, por sua vez, remete ao inciso III do art. 31 deste último diploma, concluindo-se que não se tratam da mesma garantia.
A garantia para a contratação prevista no inciso II do §8º do art. 13 da Lei Complementar nº 182/2021 refere-se à garantia contratual que objetiva assegurar à administração o ressarcimento de eventuais prejuízos causados pelo contratado ou o desconto de eventual multa a este aplicada e não paga, equivalente à garantia prevista no art. 56 da Lei nº 8.666/1993, exigível do vencedor da disputa ou do futuro contratado desde que previstos o percentual, base de cálculo e condições aplicáveis para sua prestação no instrumento convocatório da licitação ou no contrato.
A exigência de prestação de garantia para a contratação pela administração é facultativa. Na fase preparatória da licitação ou da contratação, caberá ao agente ou equipe técnica avaliar a respeito de sua viabilidade, utilidade, benefício e potencial caráter restritivo à competição.
Contratação de startup pelas empresas estatais
As empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias poderão adotar, no que couber, as disposições da Lei Complementar nº 182/2021, nos termos de regulamento interno de licitações e contratações de que trata o art. 40 da Lei nº 13.303/2016, e seus conselhos de administração poderão estabelecer valores diferenciados para os limites de que tratam o § 2º do art. 14 e o § 3º do art. 15 da referida Lei Complementar.
A finalidade do regulamento previsto no art. 40 da Lei nº 13.303/2016 é disciplinar as licitações e contratações de serviços, inclusive de engenharia e de publicidade, a aquisição e a locação de bens, a alienação de bens e ativos integrantes do patrimônio das empresas estatais e a execução de obras a serem integradas a esse patrimônio. A sistematização de normas que disciplinam licitações e contratações, por meio de regulamento, inclusive as atinentes a licitações e contratações de soluções inovadoras, nos termos da Lei Complementar nº 182/2021, almeja proporcionar uniformidade e racionalidade na atuação dos responsáveis por esses processos, bem como previsibilidade aos interessados em contratar com a empresa estatal.
* Marinês Restelatto Dotti. Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora de livros e artigos jurídicos. Professora em cursos de Pós-Graduação em Direito Público. Conferencista na área de licitações e contratações da administração pública. Currículo atualizado: http://lattes.cnpq.br