*Jessé Torres Pereira Junior
Problemas de gestão e questões jurídicas se influenciam reciprocamente. A interdisciplinaridade entre o direito e outras áreas do conhecimento tem sido cada mais reconhecida e posta em relevo para a construção de melhores soluções, no mundo contemporâneo.
O direito público do Século XXI está cada vez mais balizado por princípios, que nada mais são do que normas jurídicas gerais, impessoais e abstratas, providas de eficácia e coerção, predispostas a desenhar o norte valorativo de um sistema, de tal modo que a violação de um princípio equivale à violação de uma norma jurídica essencial para o funcionamento do sistema, daí cada princípio portar a efetividade exigente de seu cumprimento e ser provido de sanção para o caso de seu comprovado descumprimento.
Com fundamento no art. 37, § 4º, da Constituição da República, a Lei da Improbidade Administrativa (nº 8.429/92), em seu art. 11, define como terceira categoria de atos de improbidade aquela constituída por condutas de gestores que violam princípios da administração pública dolosamente, isto é, a conduta ímproba, por violação de princípios, traduz má-fé e desonestidade; ignorância e despreparo podem dar origem a irregularidades ou ilegalidades, não a improbidade. O gestor ímprobo é aquele que, deliberadamente, pratica atos violadores de princípios com o propósito de atender a seus próprios interesses ou de terceiros, em detrimento do interesse público.
A Constituição brasileira de 1988 explicita cinco princípios – além de outros que dela se extraem implicitamente – a que a administração pública, direta ou indireta, em qualquer das esferas da federação e em qualquer de seus poderes constituídos, deve obediência: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput). Se qualquer gestor público ofende tais princípios dolosamente, estará praticando, no mínimo, ato de improbidade, que também poderá configurar crime, e esse gestor estará sujeito a ser sancionado nas três esferas de responsabilização – administrativa, civil e penal -, ao final dos devidos processos, observadas as garantias da ampla defesa e do contraditório.
A gestão pública brasileira está a conviver, nos últimos anos, com a instauração de inquéritos e processos destinados a apurar responsabilidades administrativas, civis e penais de agentes públicos e privados no emprego de verbas públicas, resultando em índice de condenações que se prenunciam.
A necessária amplificação, pela mídia e outros veículos eletrônicos de comunicação, da deformação de conduta dos gestores na aplicação dos princípios regentes da administração pública basta para que se formule a condenação generalizada dos gestores públicos brasileiros? Pondere-se que não. A circunstância de haver uma ordem jurídica transgredida, levando à instauração de processos atraentes de condenações, indica a existência de certo número de gestores transgressores, mas não fornece índices dessas transgressões em face do sistema global da gestão pública brasileira. Não se conhece pesquisa ou levantamento que aponte, especificadamente, que tais casos representam tal ou qual percentual de gestores públicos brasileiros ímprobos [notícia veiculada na edição de 11.05.2018, p. 2, do jornal O GLOBO, atribui ao Ministro Gilmar Mendes, do STF, a informação, lançada em julgamento da Corte, de que, “em 2016, havia 301.346 inquéritos civis na Justiça Estadual... 32.334 se referem a casos de improbidade administrativa. No mesmo ano, o Ministério Público Federal tinha 76.135 inquéritos civis, dos quais 14.323 tratavam de improbidade”, dados que, a serem confirmados, indicariam que os casos de improbidade administrativa representariam entre 10% e 18% dos inquéritos civis instaurados para a apuração de ilicitudes na administração pública federal e dos estados], ou seja, aqueles que, no cotidiano de suas funções, afirmam proceder conforme à lei, mas a ofendem por via transversa ou oculta; garantem ser impessoais suas escolhas administrativas, porém almejam satisfazer interesses com nome e endereço diversos da sociedade brasileira; asseguram proferir, de acordo com a moralidade administrativa, decisões que, todavia, se desviam dos valores que as balizam na Constituição, na legislação e nos contratos, sedes das chamadas obrigações primárias; dizem ser transparentes as parcerias que formalizam, cujas motivações, contudo, são desconhecidas, porque impublicáveis, da sociedade a que deveriam servir; proclamam ser eficientes medidas e programas de custo superior ao razoável, acrescido por pagamentos indevidos ou com o fim de obter vantagens à margem do suposto benefício.
Esse comportamento doloso, que caracteriza a conduta ímproba na gestão pública, não pode ser generalizadamente imputado à conduta ordinária dos gestores públicos brasileiros. Há, por toda parte, esforços pessoais e institucionais para que a boa qualidade da gestão supere a eventual má qualidade ética e técnica de pessoas despreparadas para gerir ou que, carentes de uma formação educacional e ética adequada, se deixam seduzir pelo egocentrismo que acompanha a natureza humana, qualquer que seja a sua naturalidade ou nacionalidade. A história registra que a corrupção imperou em períodos passados da vida de países europeus hoje tidos como modelos de ética e qualidade na gestão pública.
Por isto que o grande desafio da gestão pública, e não apenas a brasileira, é o do investimento na formação das pessoas, para que saibam fazer bom uso de técnicas e ferramentas de gestão, sem desvios que tanto podem ser decorrentes de ignorância e despreparo, quanto de má-fé, aqui residindo a improbidade que arruína a gestão e compromete o desenvolvimento social e econômico.
Os debates, que ainda ocorrem, sobre a conceituação jurídica de eficiência, no plano da gestão, se aproximam de concluir que se há de distinguir eficiência (conceito pouco versado pelo direito) de eficácia (conceito de grande e antiga utilidade jurídica). Enquanto eficiência traduz a relação custo-benefício de uma atividade, projeto ou iniciativa, eficácia corresponde à aptidão de uma norma, ato ou contrato produzir os efeitos que motivaram a sua edição. Desde a tradicional decomposição dos planos em que se desdobra a formação do ato jurídico - existência, validade e eficácia -, que se tem por certo que a eficácia pode ser sobrestada quando o próprio ato determine, em suas últimas disposições normativas, que somente começará a produzir efeitos - ou seja, ser cogente e exigível - a partir do implemento do prazo estabelecido. Há leis, decretos regulamentares e contratos que estabelecem que somente terão vigência depois de certo prazo de sua publicação. A palavra vigência é aí empregada defeituosamente. O que se deveria dizer é eficácia. Vigente, no sentido de conhecido e obrigatório, o ato já é desde que publicado. Mas, nada obstante publicado, pode não estar ainda apto e ter o seu cumprimento exigido porque ele próprio ou a sua lei de regência delimitou o termo inicial de sua eficácia para tantos dias ou anos após a sua publicação, no evidente intuito de assegurar tempo de ajustamento para todos aqueles que passarão a ter o exercício de direitos ou obrigações subordinado ao regime estabelecido pela nova norma.
O sentido com que a Emenda Constitucional nº 19/1998 acrescentou a eficiência ao rol dos princípios enunciados na cabeça do art. 37 parece referir-se a essa moeda de dupla face: de um lado, a relação custo-benefício; de outro, a aptidão para produzir resultados (nossos atuais Código Civil e Código de Processo Civil adotaram prazos de eficácia sobrestados, embora já vigentes) . Como se trata de eficiência na seara da gestão pública, esse resultado a ser alcançado só poderá ser o de interesse público. Em síntese, não atende ao princípio da eficiência a ação de gestão que produz pouco, nenhum ou discutível benefício com custo desproporcional; tampouco será eficiente a ação que, embora com razoável custo-benefício, poderia obter resultado de superior interesse público com a mesma ou inferior relação custo-benefício. Trata-se de princípio cuja aplicação haverá de ser avaliada nas circunstâncias do caso concreto, medindo-se não apenas os aspectos financeiros, se não que, também, opções e disponibilidades técnicas, no tempo e no espaço, incluindo-se a previsão de riscos. Tais e tantos pormenores de operacionalização do princípio exigem qualificação, cultura e instrumentos gerenciais que soam distantes do cotidiano da gestão pública brasileira, considerada a diversidade estrutural, a dimensão física e a capacitação operacional de seus milhares de órgãos e unidades federais, estaduais, municipais e distritais, na administração direta e indireta, aqui acrescendo-se as autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista.
Não há obra humana perfeita e a legislação também padece de imperfeições que, com o desdobramento de sua aplicação, se vão evidenciando e acentuando. A tais imperfeições técnicas somam-se desvios éticos, que existem, como sempre existirão, onde quer que haja competições envolventes de grandes somas de recursos públicos. Recorde-se que o movimento de recursos gerado pela atividade contratual do estado brasileiro representa, hoje, cerca de 500 bilhões de reais ao ano. Qualquer que seja o regime legal, sempre haverá quem nele busque encontrar pontos vulneráveis pelos quais se intrometam práticas de compadrio, destrutivas da competição isonômica, que é a essência de toda licitação, qualquer que seja o seu regime normativo.
A revisão da legislação no direito brasileiro deve ser movida por sua simplificação. Dentre outras premissas conceituais, reconheça-se que a proposta de simplificar estruturas, regras, procedimentos administrativos e processos de trabalho, com o fim de elevar a relação custo-benefício (eficiência) e contribuir para a obtenção de resultados (eficácia), assim satisfazendo aos compromissos do estado com a sociedade civil, tem sido desenvolvida na gestão pública de vários estados democráticos de direito, desde meados do século passado.
A experiência mais próxima da cultura brasileira - filiada aos sistemas romano-germânicos de compreensão do direito, fundados na norma positivada - se encontra na doutrina e na práxis da administração pública dos países integrantes da comunidade europeia deste século, sem embargo de retratar conhecidos esforços da gestão pública filiada a sistemas jurídicos anglo-saxões, fundados nos costumes. Tanto que, no Reino Unido, tornou-se conhecida e reiterada a pauta dos dez princípios da simplificação dos serviços públicos, corrente entre os gestores públicos britânicos, em livre tradução de seu manual de gestão:
1 – Comece com o usuário
A simplificação do serviço começa com a identificação do usuário, do seu ambiente sócio familiar, seus anseios, sua rotina, suas reclamações, suas necessidades, explícitas e implícitas. Se você não sabe quem é o seu usuário e do que ele precisa, você não vai construir a coisa certa. Faça pesquisas, analise dados, fale com os usuários, levante da cadeira e vá para a rua! Não faça suposições, coloque-se no lugar do usuário, experimente você o serviço, tenha empatia e lembre-se de que o que eles pedem nem sempre é o que eles precisam.
2 – Decida com dados
Na maioria dos casos, podemos aprender com o comportamento do mundo real, observando como os serviços existentes são usados. Deixe os dados colhidos na prestação do serviço (tempo e custos da prestação para o usuário, nível de satisfação, entre outros) direcionar a tomada de decisões, ao invés de intuições ou conjecturas. Continue fazendo isso depois de ter seu serviço disponível e sempre que tiver novos protótipos e testes com os usuários.
3 – Sempre poderá ser mais simples
É muito simples fazer algo complexo, mas é muito complexo fazer algo simples. Fazer algo simples de usar é muito mais difícil, especialmente quando os sistemas subjacentes são complexos. O usuário necessita de foco, ele precisa ser direcionado por um serviço simples, claro e intuitivo, e não se perder na complexidade. Não tome "sempre foi assim" como resposta. Menos é mais, procure retirar funcionalidades, formulários, opções, campos, cores etc. Por fim, sempre use a regra KISS (Keep it Simple, Servant).
4 – Dê pequenos e constantes passos
A única maneira de resolver um grande desafio é dividi-lo em pequenas ações. A melhor maneira de construir bons serviços é começar pequeno e iterar constantemente. Libere o Serviço Mínimo Viável (SMV) com antecedência, teste-o com usuários reais, passe de Alpha para Beta para “Go Live” adicionando recursos, excluindo coisas que não funcionam e fazendo refinamentos com base em feedback. A iteração reduz o risco. Torna as grandes falhas improváveis e transforma pequenas falhas em lições. Se um protótipo não estiver funcionando, não tenha medo de descartá-lo e recomeçar.
5 – Simplicidade é acessibilidade
Tudo o que construímos deve ser o mais inclusivo possível. Estamos construindo para as necessidades, não para o público. Estamos projetando para todos, não apenas para aqueles que são a maioria, como nós. As pessoas que mais precisam de nossos serviços são muitas vezes as pessoas que o consideram mais difícil de usar. Vamos pensar sobre essas pessoas desde o início.
6 – Entenda o presente e projete o futuro
Não estamos projetando para uma tela de computador ou smartphone. Estamos projetando para as pessoas que acompanham tendências. Precisamos pensar muito sobre o contexto em que estão usando nossos serviços. Pergunte-se: eles estão em uma biblioteca? Eles estão em um telefone? Eles só estão realmente familiarizados com o facebook? Eles usaram a web antes? Onde estarão daqui a 3, 5 ou 10 anos?
7 – Crie serviços digitais, não websites
Um serviço é algo que ajuda as pessoas a fazer alguma coisa. Nosso trabalho é descobrir as necessidades dos usuários e construir o serviço que atenda a essas necessidades, que seja 100% digital, que possa ser consumido em uma caminhada no parque, no tempo de uma parada no semáforo vermelho. Claro que muito do que são os serviços estará em páginas na web, mas não estamos aqui para construir canais de informação unidirecional. O mundo digital tem de se conectar ao mundo real, por isso temos de pensar sobre todos os aspectos de um serviço, e certifique-se de que eles somam algo que atenda às necessidades do usuário.
8 – Seja consistente, não uniforme
Devemos usar a mesma linguagem e os mesmos padrões de design sempre que possível. Isso ajuda as pessoas a se familiarizarem com nossos serviços, mas quando isso não é possível, devemos nos certificar de que nossa abordagem é consistente.
Esta não é uma camisa de força ou um livro de regras. Cada circunstância é diferente. Quando encontramos padrões que funcionam, devemos compartilhá-los e falar sobre o motivo pelo qual os usamos. Mas isso não deve impedir-nos de melhorá-los ou mudá-los no futuro, quando encontrarmos melhores maneiras de fazer as coisas ou as necessidades dos usuários mudarem.
9 – Crie em parceria e compartilhe
Devemos compartilhar o que estamos fazendo sempre que pudermos. Com colegas, com usuários, com o mundo. Compartilhar códigos, compartilhar projetos, compartilhar ideias, compartilhar intenções, compartilhar falhas. Quanto mais olhos houver em um serviço, melhor ele fica.
Se você conhece uma maneira de fazer algo que funciona e é eficiente, deve torná-la reutilizável e compartilhável, em vez de reinventar a roda o tempo todo. Isso significa construir plataformas e registros que outros órgãos possam utilizar, fornecendo recursos que sejam facilmente utilizáveis e escaláveis para outros contextos e trabalhos.
10 – E funciona?
Por fim e mais importante, caso nenhum destes mandamentos tenha ajudado, faça-se simplesmente a seguinte pergunta: “Esta solução melhora a vida do usuário?” Se não transformar claramente a experiência do usuário do serviço para melhor, simplesmente abandone-a e comece novamente do mandamento número 1.
*Jessé Torres Pereira Junior. Desembargador. Conferencista emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e professor-coordenador de seus cursos de pós-graduação em direito administrativo. Professor convidado da Fundação Getúlio Vargas-Rio e da Escola Superior de Advocacia da OAB-RJ. Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros.