*Marinês Restelatto Dotti
Sumário: 1. Introdução. 2. Pessoas físicas e jurídicas e a admissibilidade em licitações e contratações públicas. 3. Impedimento à contratação de pessoas físicas e jurídicas decorrente de sanção aplicada. 4. Normas que veiculam condições que impedem entidades empresarias de desenvolverem suas atividades. 5. Participação indireta em licitação mediante a constituição de nova sociedade empresarial. 6. A figura do sócio e sua relação com a pessoa jurídica. 7. Lei de improbidade administrativa. 8. Conclusão.
1. Introdução
Estabelece o art. 14, inciso III, da Lei nº 14.133/2021, que não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente, pessoa física ou jurídica que se encontre, ao tempo da licitação, impossibilitada de participar da licitação em decorrência de sanção que lhe foi imposta. Do exposto no referido dispositivo da nova lei de licitações, importante que se analise as seguintes situações e seus desdobramentos: (a) as definições de pessoa física e de pessoa jurídica e a admissibilidade desses sujeitos em licitações e contratações públicas; (b) o impedimento decorrente da diversidade de sanções que podem ser aplicadas; e (c) a figura do sócio e sua relação com a pessoa jurídica.
2. Pessoas físicas e jurídicas e a admissibilidade em licitações e contratações públicas
De acordo com o art. 2º da Instrução normativa SEGES/ME nº 116, de 21 de dezembro de 2021, considera-se pessoa física todo o trabalhador autônomo, sem qualquer vínculo de subordinação para fins de execução do objeto da contratação pública, incluindo os profissionais liberais não enquadrados como sociedade empresária ou empresário individual, nos termos das legislações específicas, que participa ou manifesta a intenção de participar de processo de contratação pública, sendo equiparado a fornecedor ou ao prestador de serviço que, em atendimento à solicitação da Administração, oferece proposta. Em atendimento ao disposto no referido art. 2º, os editais ou os avisos de contratação direta deverão possibilitar a contratação das pessoas físicas, em observância aos objetivos da isonomia e da justa competição.
Consoante estabelecem os artigos 966 e 967 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil), considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, sendo obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade. Segundo o parágrafo único do art. 966, não é considerado empresário aquele que exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Art. 967. É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade.
É permitido ao empresário o registro na categoria de Microempreendedor Individual – MEI, assim considerado aquele que tenha auferido receita bruta, no ano-calendário anterior, até o limite estipulado em lei, optante pelo Simples Nacional, e que não esteja impedido de optar pela sistemática prevista no art. 18 da Lei Complementar nº 123/2006.
Independentemente do porte, o empresário habilita-se ao exercício da atividade empresária mediante a prévia inscrição no respectivo registro. Daí não ser admitido à Administração manter relações contratuais com agente econômico informal, de modo a contratar serviços, obras ou bens a quem se põe à margem da ordem jurídica. Aquele que não se constitui regularmente em entidade empresarial esquiva-se dos encargos de natureza tributária e trabalhista, seguindo-se que não reúne condições de comprovar as regularidades fiscal, trabalhista e jurídica que habilitam a contratar com a Administração Pública.
Importante que os editais de licitação definam se a participação será exclusiva a entidades empresariais/pessoas jurídicas (contratações que envolvam atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços) ou se a participação destinar-se-á, exclusivamente, a pessoas físicas (trabalhador autônomo, sem qualquer vínculo de subordinação para fins de execução do objeto da contratação pública, incluindo os profissionais liberais não enquadrados como sociedade empresária ou empresário individual).
A depender da natureza do objeto da contratação e da forma como será executado, é possível admitir-se, num mesmo certame, a participação de pessoas físicas e jurídicas. São dois exemplos: (a) a contratação de um projeto básico o qual poderá ser executado por uma sociedade empresária (escritório de engenharia ou arquitetura) ou, ainda, por um engenheiro ou arquiteto (profissional liberal); e (b) a contratação de consultoria jurídica, a qual poderá ser desempenhada por uma sociedade de advogados (pessoa jurídica) ou por um advogado, profissional liberal.
3. Impedimento à contratação de pessoas físicas e jurídicas decorrente de sanção aplicada
Segundo a nova lei de licitações, não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente, pessoa física ou jurídica que se encontre, ao tempo da licitação, impossibilitada ou impedida de participar da licitação em decorrência de sanção que lhe foi imposta.
O instituto jurídico do impedimento tem por núcleo conceitual a isenção ou imparcialidade do sujeito, seja este pessoa física ou jurídica que pretenda servir à Administração Pública mediante vínculo contratual. Se o sujeito tem comprometida a sua imparcialidade para bem desempenhar a função, deve ser impedido de fazê-lo. Há diplomas que contemplam sanções que podem ser aplicadas a pessoas físicas e jurídicas, cujos efeitos impedem-nas de participar de licitações e contratar com o Poder Público. Confiram-se:
Lei nº 14.133/2021
Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções:
[...]
III - impedimento de licitar e contratar;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar.
[...]
§ 4º A sanção prevista no inciso III do caput deste artigo será aplicada ao responsável pelas infrações administrativas previstas nos incisos II, III, IV, V, VI e VII do caput do art. 155 desta Lei, quando não se justificar a imposição de penalidade mais grave, e impedirá o responsável de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta do ente federativo que tiver aplicado a sanção, pelo prazo máximo de 3 (três) anos.
§ 5º A sanção prevista no inciso IV do caput deste artigo será aplicada ao responsável pelas infrações administrativas previstas nos incisos VIII, IX, X, XI e XII do caput do art. 155 desta Lei, bem como pelas infrações administrativas previstas nos incisos II, III, IV, V, VI e VII do caput do referido artigo que justifiquem a imposição de penalidade mais grave que a sanção referida no § 4º deste artigo, e impedirá o responsável de licitar ou contratar no âmbito da Administração Pública direta e indireta de todos os entes federativos, pelo prazo mínimo de 3 (três) anos e máximo de 6 (seis) anos.
Lei nº 8.666/1993
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
[...]
Art. 88. As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei:
I - tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tributos;
II - tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação;
III - demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados.
Lei nº 10.520/2002 - Lei do pregão:
Art. 7º Quem, convocado dentro do prazo de validade da sua proposta, não celebrar o contrato, deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exigida para o certame, ensejar o retardamento da execução de seu objeto, não mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execução do contrato, comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal, ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, será descredenciado no Sicaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o inciso XIV do art. 4º desta Lei, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais.
Lei nº 12.462/2011 - Regime diferenciado de contratações públicas - RDC:
Art. 47. Ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo das multas previstas no instrumento convocatório e no contrato, bem como das demais cominações legais, o licitante que:
I - convocado dentro do prazo de validade da sua proposta não celebrar o contrato, inclusive nas hipóteses previstas no parágrafo único do art. 40 e no art. 41 desta Lei;
II - deixar de entregar a documentação exigida para o certame ou apresentar documento falso;
III - ensejar o retardamento da execução ou da entrega do objeto da licitação sem motivo justificado;
IV - não mantiver a proposta, salvo se em decorrência de fato superveniente, devidamente justificado;
V - fraudar a licitação ou praticar atos fraudulentos na execução do contrato;
VI - comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal; ou
VII - der causa à inexecução total ou parcial do contrato.
Lei nº 8.443/1992 - Lei orgânica do Tribunal de Contas da União:
Art. 46. Verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, o Tribunal declarará a inidoneidade do licitante fraudador para participar, por até cinco anos, de licitação na Administração Pública Federal.
Lei nº 12.529/2011 - estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica:
Art. 38. Sem prejuízo das penas cominadas no art. 37 desta Lei, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente:
[…]
II - a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação tendo por objeto aquisições, alienações, realização de obras e serviços, concessão de serviços públicos, na administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal, bem como em entidades da administração indireta, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos;
Lei nº 8.429/1992 - Lei de improbidade administrativa:
Art. 12. Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
I - na hipótese do art. 9º desta Lei, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 14 (catorze) anos, pagamento de multa civil equivalente ao valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 14 (catorze) anos;
II - na hipótese do art. 10 desta Lei, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 12 (doze) anos, pagamento de multa civil equivalente ao valor do dano e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 12 (doze) anos;
III - na hipótese do art. 11 desta Lei, pagamento de multa civil de até 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 4 (quatro) anos;
[...]
§ 4º Em caráter excepcional e por motivos relevantes devidamente justificados, a sanção de proibição de contratação com o poder público pode extrapolar o ente público lesado pelo ato de improbidade, observados os impactos econômicos e sociais das sanções, de forma a preservar a função social da pessoa jurídica, conforme disposto no § 3º deste artigo.
Lei nº 9.605/1998 - dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente:
Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º: […] XI - restritiva de direitos. […] §8º As sanções restritivas de direito são: […] V - proibição de contratar com a Administração Pública, pelo período de até três anos.
Lei nº 12.527/2011 - Lei de acesso à informação:
Art. 33. A pessoa física ou entidade privada que detiver informações em virtude de vínculo de qualquer natureza com o poder público e deixar de observar o disposto nesta Lei estará sujeita às seguintes sanções:
[…]
IV - suspensão temporária de participar em licitação e impedimento de contratar com a administração pública por prazo não superior a 2 (dois) anos; e
V - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a administração pública, até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade.
§1º As sanções previstas nos incisos I, III e IV poderão ser aplicadas juntamente com a do inciso II, assegurado o direito de defesa do interessado, no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias.
§2º A reabilitação referida no inciso V será autorizada somente quando o interessado efetivar o ressarcimento ao órgão ou entidade dos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso IV.
§3º A aplicação da sanção prevista no inciso V é de competência exclusiva da autoridade máxima do órgão ou entidade pública, facultada a defesa do interessado, no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista.
A Lei nº 13.019/2014 - estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação:
Art. 73. Pela execução da parceria em desacordo com o plano de trabalho e com as normas desta Lei e da legislação específica, a administração pública poderá, garantida a prévia defesa, aplicar à organização da sociedade civil as seguintes sanções: [...]
II - suspensão temporária da participação em chamamento público e impedimento de celebrar parceria ou contrato com órgãos e entidades da esfera de governo da administração pública sancionadora, por prazo não superior a dois anos;
III - declaração de inidoneidade para participar de chamamento público ou celebrar parceria ou contrato com órgãos e entidades de todas as esferas de governo, enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que a organização da sociedade civil ressarcir a administração pública pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso II.
A Lei nº 4.737/1965 - instituiu o Código Eleitoral:
Art. 7º O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o juiz eleitoral até 30 (trinta) dias após a realização da eleição, incorrerá na multa de 3 (três) a 10 (dez) por cento sobre o salário-mínimo da região, imposta pelo juiz eleitoral e cobrada na forma prevista no art. 367. §1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor: [....] III - participar de concorrência pública ou administrativa da União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou das respectivas autarquias;
A Lei nº 13.303/2016 - estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias:
Art. 38. Estará impedida de participar de licitações e de ser contratada pela empresa pública ou sociedade de economia mista a empresa: [...]
II - suspensa pela empresa pública ou sociedade de economia mista;
III - declarada inidônea pela União, por Estado, pelo Distrito Federal ou pela unidade federativa a que está vinculada a empresa pública ou sociedade de economia mista, enquanto perdurarem os efeitos da sanção;
IV - constituída por sócio de empresa que estiver suspensa, impedida ou declarada inidônea;
V - cujo administrador seja sócio de empresa suspensa, impedida ou declarada inidônea;
VI - constituída por sócio que tenha sido sócio ou administrador de empresa suspensa, impedida ou declarada inidônea, no período dos fatos que deram ensejo à sanção;
VII - cujo administrador tenha sido sócio ou administrador de empresa suspensa, impedida ou declarada inidônea, no período dos fatos que deram ensejo à sanção;
VIII - que tiver, nos seus quadros de diretoria, pessoa que participou, em razão de vínculo de mesma natureza, de empresa declarada inidônea.
Como retro demonstrado, há uma diversidade de sanções que podem ser aplicadas a pessoas físicas e jurídicas, cujos efeitos as tornam proibidas de participar de licitações e contratar com a Administração Pública. O alcance dos efeitos é definido nas respectivas normas citadas (princípio da tipicidade). Competirá ao agente ou comissão de contratação ou, ainda, ao pregoeiro certificar-se da existência de eventual impedimento da pessoa física ou jurídica que participa do certame ou almeja contratar com o órgão ou entidade pública. A consulta a registro de sanção aplicada realiza-se por meio dos seguintes sistemas: Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e ao Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP).
4. Normas que veiculam condições que impedem entidades empresarias de desenvolverem suas atividades
A Lei nº 12.846/2013 (Lei anticorrupção), em seu art. 22, criou o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) e trouxe a obrigatoriedade de os entes públicos, de todos os poderes e esferas de governo, manterem o cadastro atualizado. Para atender à exigência, a CGU desenvolveu o Sistema Integrado de Registro do CEIS/CNEP, que é alimentado diretamente pelos entes e é a fonte de dados publicados no CNEP. O cadastro também registra os acordos de leniência firmados pelas empresas com o poder público, tanto os vigentes como os descumpridos. Veja-se que, em razão da prática de atos previstos no art. 5º da Lei nº 12.846/2013, podem ser aplicadas as sanções de suspensão ou interdição parcial de atividades ou, ainda, a dissolução compulsória da pessoa jurídica infratora, condições que as impedem de manter suas atividades econômicas regulares e, por conseguinte, de executar o objeto contratual. Assim:
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5º desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras: [...] II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades;
O Código de Processo Penal, em seu art. 319, VI, prevê que:
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: [...] VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
A medida cautelar de suspensão do exercício de atividade de natureza econômica ou financeira prevista no CPP e a sanção de suspensão ou interdição parcial de atividades aplicada com base na Lei nº 12.846/2013 (Lei anticorrupção) veiculam condições que impedem a entidade de desenvolver suas atividades regulares e, por conseguinte, de executar o objeto do contrato administrativo.
5. Participação indireta em licitação mediante a constituição de nova sociedade empresarial
Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, ainda que indiretamente, pessoa física ou jurídica que se encontre, ao tempo da licitação, impossibilitada de participar da licitação em decorrência de sanção que lhe foi imposta.
É prática conhecida a constituição de nova entidade empresarial, ulterior a (empresa) que foi sancionada com impedimento de participar de licitação e contratar com o Poder Público, na maioria das vezes com sócio comum ou sócios comuns e com o mesmo objeto social, no evidente intuito de ladear o impedimento decorrente de sanção aplicada e viabilizar a participação da nova sociedade em licitações e contratações públicas. Tal mecanismo constitui forma indireta de contratar com a Administração. Em vista disso, prevê a nova lei de licitações que o impedimento decorrente de sanção aplicada será também aplicado ao licitante que atue em substituição a outra pessoa, física ou jurídica, com o intuito de burlar a efetividade da sanção a ela aplicada, inclusive a sua controladora, controlada ou coligada, desde que devidamente comprovado o ilícito ou a utilização fraudulenta da personalidade jurídica do licitante.
No âmbito das licitações e contratações administrativas, aplica-se a “disregard doctrine” para desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade empresarial que age com o propósito de ladear o impedimento decorrente de sanção aplicada e viabilizar a participação da nova sociedade em licitações e contratações públicas, conforme previsto na Lei nº 14.133/2021, verbis:
Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.
Também encontra previsão na Lei nº 12.846/2013:
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.
Por meio da desconsideração da personalidade jurídica estendem-se os efeitos da sanção aplicada (proibição de contratar com o Poder Público) à pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle e, ainda, aos administradores e sócios com poderes de administração. Constitui instrumento eficaz de combate à fraude e homenageia os princípios que, na Constituição Federal, tutelam a atividade administrativa do Estado, sem embargo de serem assegurados ao licitante ou ao contratado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.
6. A figura do sócio e sua relação com a pessoa jurídica
A legislação civil garante às pessoas jurídicas existência distinta da de seus sócios. Segundo o art. 49-A, da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil), incluído pela Lei nº 13.874/2019, a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. Sendo a licitação exclusivamente destinada a entidades empresariais, comprova-se a qualificação e idoneidade da pessoa jurídica para efeitos de contratação com o Poder Público. A Lei nº 14.133/2021 não prevê a comprovação da qualificação (jurídica, fiscal, técnica e econômico-financeira) e idoneidade (inexistência de eventuais sanções aplicadas) dos sócios da empresa licitante. Quando a licitação destina-se, exclusivamente, à contratação de entidades empresarias, é inapropriado exigir-se a comprovação de qualificação e idoneidade de seus sócios, dado que a personalidade destes (sócios) não se confunde com a das empresas. Extrai-se, pois, que a existência de processo apuratório de responsabilidade do sócio ou eventual sanção aplicada a este não impede a pessoa jurídica de participar de licitação ou de ser contratada pela Administração Pública.
Ver-se-á, a seguir, o alcance da sanção de proibição de contratar com o Poder Público decorrente de ação de improbidade administrativa e sua extensão à entidade empresarial.
7. Lei de improbidade administrativa
Segundo o art. 3º, caput, da Lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992), as disposições desse diploma são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade. Prossegue o seu §1º que os sócios, os cotistas, os diretores e os colaboradores de pessoa jurídica de direito privado não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à pessoa jurídica, salvo se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos, caso em que responderão nos limites da sua participação. No âmbito sancionatório, uma das penalidades previstas na Lei nº 8.429/1992, decorrente da prática de ato de improbidade administrativa, consiste na proibição de contratar com o poder público, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário (art. 12, incisos I, II e III). Confiram-se os dispositivos:
Art. 3º As disposições desta Lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade.
§ 1º Os sócios, os cotistas, os diretores e os colaboradores de pessoa jurídica de direito privado não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à pessoa jurídica, salvo se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos, caso em que responderão nos limites da sua participação.
[...]
Art. 12. Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
I - na hipótese do art. 9º desta Lei, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 14 (catorze) anos, pagamento de multa civil equivalente ao valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 14 (catorze) anos;
II - na hipótese do art. 10 desta Lei, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 12 (doze) anos, pagamento de multa civil equivalente ao valor do dano e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 12 (doze) anos;
III - na hipótese do art. 11 desta Lei, pagamento de multa civil de até 24 (vinte e quatro) vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 4 (quatro) anos;
Dos dispositivos retro citados extrai-se que: i. a Lei de improbidade administrativa é aplicável a agente privado desde que comprovado que induziu ou concorreu dolosamente para a prática do ato de improbidade; ii. sócios, cotistas, diretores e colaboradores de pessoa jurídica de direito privado não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à pessoa jurídica; iii. sócios, cotistas, diretores e colaboradores de pessoa jurídica de direito privado responderão pelo ato de improbidade quando comprovada a participação e aferição de benefícios diretos, respondendo nos limites da participação; iv. constitui sanção decorrente de ação de improbidade administrativa a proibição de contratar com o Poder Público, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual o agente privado sancionado seja sócio majoritário, ou seja, resulta vedada a participação, em licitação ou contratação direta, de entidade empresarial que possua sócio majoritário sancionado com base na Lei de improbidade administrativa, pelo prazo fixado em sentença condenatória.
Inexistindo ordem judicial cautelatória impedindo a sociedade empresarial de participar de licitação ou, ainda, inexistindo trânsito em julgado de sentença condenatória do sócio (art. 12, § 9º, da Lei nº 8.429/1992) cujos efeitos estendam-se à personalidade jurídica da empresa, como no caso do art. 12, incisos I, II e III, da Lei nº 8.429/1992 (proibição de contratar com o poder público ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário), não haverá óbice para que esta (empresa) participe de licitações ou contratações promovidas pela Administração Pública.
8. Conclusão
As pessoas físicas e jurídicas podem ser sancionadas em razão do não cumprimento de obrigações contratuais ou por ilícitos praticados. Uma das sanções consiste na proibição de participação em licitações e contratação com a Administração Pública. Os efeitos das sanções de impedimento (proibição) de licitar e contratar, conforme os diplomas citados neste estudo, são ex nunc, ou seja, não retroagem, valendo somente a partir da data em que se tornou definitiva a decisão que as aplicou, competindo à Administração, diante de contratos existentes com a pessoa física ou jurídica sancionada, avaliar a sua imediata rescisão, em cada caso. É que a depender da natureza da contratação e do estágio de sua execução, a rescisão imediata pode ser mais onerosa para a Administração que a manutenção do contrato até a conclusão do objeto ou pelo tempo suficiente à realização de nova licitação.
A existência de sanção aplicada, proibitiva de participação em licitação e de contratar com a Administração Pública, não constitui requisito de habilitação, por conseguinte, não pode ser causa de inabilitação. A consequência, quando verificada a existência de sanção da espécie, mediante consulta a sistemas oficiais de registros de penalidades, é a sumária exclusão do licitante do certame, por ausência de condição legal de participação, por isto que os atos convocatórios de licitação devem dispor a respeito da exclusão de licitantes nessa condição.
* Marinês Restelatto Dotti. Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora de livros e artigos jurídicos. Professora em cursos de Pós-Graduação em Direito Público. Conferencista na área de licitações e contratações da administração pública. Currículo atualizado: http://lattes.cnpq.br/5561970349382628