Opinião

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    A GARANTIA DE PROPOSTA NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E OS PROBLEMAS ADVINDOS DESSA EXIGÊNCIA

    *Marinês Restelatto Dotti

     

     Dispõe a Lei nº 14.133/2021 que:

    Art. 58. Poderá ser exigida, no momento da apresentação da proposta, a comprovação do recolhimento de quantia a título de garantia de proposta, como requisito de pré-habilitação.

    § 1º A garantia de proposta não poderá ser superior a 1% (um por cento) do valor estimado para a contratação.

    § 2º A garantia de proposta será devolvida aos licitantes no prazo de 10 (dez) dias úteis, contado da assinatura do contrato ou da data em que for declarada fracassada a licitação.

    § 3º Implicará execução do valor integral da garantia de proposta a recusa em assinar o contrato ou a não apresentação dos documentos para a contratação.

    § 4º A garantia de proposta poderá ser prestada nas modalidades de que trata o § 1º do art. 96 desta Lei.

     

     

    Natureza da garantia de proposta

    A nova lei de licitações faculta à administração exigir, no momento da apresentação da proposta, a comprovação de recolhimento de quantia a título de garantia de proposta, qualificada como requisito de pré-habilitação, a qual não poderá ser superior a 1% (um por cento) do valor estimado da contratação. Trata-se de garantia que visa a demonstrar que o licitante possui lastro econômico-financeiro para participar do certame, por isso que calculada sobre o valor atribuído pela administração ao objeto da licitação, cumprindo-se, desta maneira, o princípio da isonomia entre os licitantes (a mesma base de cálculo para a apresentação do percentual de garantia de proposta alcançará todos os licitantes, igualitariamente). Ao mesmo tempo em que a Lei confere-lhe a qualificação de requisito de habilitação, notadamente de pré-habilitação, a comprovação de recolhimento de quantia a título de garantia de proposta, a ser comprovada no momento da apresentação da proposta, configura condição para participação, sem a qual o licitante não será admitido a continuar no certame.

    Guarda natureza sui generis, por três motivos: o primeiro, por tratar-se de requisito de habilitação cuja comprovação ocorre no momento da apresentação da proposta; o segundo, por constituir condição legal para o licitante continuar no certame (a não comprovação do recolhimento da garantia de proposta ou sua rejeição impede que sua proposta seja analisada e, por consequência, a participação no certame); e o terceiro, por possuir natureza sancionatória tendo em vista que a administração executará seu valor integral quando o licitante/adjudicatário recusar-se a assinar o contrato ou não apresentar documento para a contratação, como, por exemplo, a não apresentação de alguma certificação ou licença ou, ainda, de documento comprobatório da prestação de garantia de execução contratual, caso exigidas no edital. De salientar-se que a não celebração do contrato ou a não entrega de documentação exigida para a contratação pelo adjudicatário, quando convocado dentro do prazo de validade de sua proposta, constitui infração administrativa prevista no art. 155, inciso VI, da Lei nº 14.133/2021, sujeitando o infrator à sanção de impedimento de licitar e contratar prevista no art. 156, §4º, do mesmo diploma, a qual poderá ser cumulada com multa, consoante disposto no §7º. São severas as consequências que podem ser impostas ao licitante que comprova a garantia de proposta exigida no edital, mas, por exemplo, não entrega documento exigido para a contratação no prazo fixado no edital e nem a justifica. São elas: a execução do valor integral da garantia recolhida, o impedimento de licitar ou contratar no âmbito da administração pública direta e indireta do ente federativo que tiver aplicado a sanção, pelo prazo máximo de 3 (três) anos, podendo, ainda, esta sanção, ser cumulada com multa. De salientar-se que cominações distintas em decorrência da prática de um mesmo fato ofendem o princípio do ne bis in idem.

     

    Garantia de proposta e ampla participação

    A exigência de garantia da proposta limitada a 1% (um por cento) do valor estimado para a contratação obriga a que o licitante, interessado em participar do certame, antecipe o recolhimento de quantia, o qual poderá efetivar-se por meio de caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública, seguro-garantia ou fiança bancária.

    A Constituição Federal, em seu art. 37, inciso XXI, consagrou o acesso universal a todos os interessados em participar de licitações, impondo à administração pública, para o efeito de não restringir a competição, o dever de exigir, tão-somente, requisitos de qualificação técnica e econômica indispensáveis à assegurar o cumprimento das obrigações contratuais.

    A exigência de garantia prévia para participação na licitação fere a ampla competitividade em licitações, em razão dos seguintes motivos: (a) condiciona a que todos os interessados na licitação, caso queiram participar, comprovem o recolhimento de quantia a título de garantia de proposta, sem a qual a participação no certame não será admitida; (b) obriga os licitantes a despenderem recursos para participarem da licitação; (c) limita a participação no certame àqueles que cumprem a garantia, afastando licitantes que não o fazem, nada obstante atenderem a todos os requisitos de habilitação previstos no edital, com potencial para ofertarem propostas vantajosas para a administração; e (d) não acrescenta qualquer vantagem ou benefício para a administração visto que a garantia será devolvida aos licitantes no prazo de 10 (dez) dias úteis, contado da assinatura do contrato ou da data em que for declarada fracassada a licitação.

     

    Incongruências a respeito da exigência de garantia da proposta

    De acordo com o art. 17 da Lei nº 14.133/2021, o processo de licitação observará as seguintes fases, em sequência: preparatória; de divulgação do edital de licitação; de apresentação de propostas e lances, quando for o caso; de julgamento; de habilitação; recursal; e de homologação. A regra nos procedimentos licitatórios regidos pela nova lei de licitações é a de cumprir-se a fase de apresentação de propostas em momento anterior a de habilitação. Excepcionalmente, mediante ato motivado com explicitação dos benefícios decorrentes, poderá haver a inversão de fases, ou seja, a fase de habilitação antecederá as fases de apresentação de propostas e lances e de julgamento, desde que expressamente previsto no edital de licitação.

    Adotando-se a regra que rege o procedimento licitatório prevista no art. 17 da Lei, a  garantia de proposta, qualificada como requisito de pré-habilitação, será exigida em fase que não lhe é própria, ou seja, será exigida na fase de apresentação da proposta, impedindo o licitante de continuar no certame caso não a comprove documentalmente, mesmo que atenda a todos os requisitos de habilitação previstos no edital, inclusive os de qualificação econômica que atestariam a sua saúde financeira. Na hipótese de inversão de fases, em que a habilitação antecede a apresentação de propostas e julgamento, a comprovação do recolhimento de quantia a título de garantia de proposta, mesmo tratando-se de requisito de pré-habilitação, continuará a ocorrer no momento da apresentação da proposta, segundo o caput do art. 58.

    A configuração da garantia de proposta como requisito de pré-habilitação e sua comprovação no momento da apresentação da proposta criaram situação sui generis para os agentes condutores da licitação, seja qual for o rito procedimental adotado. Adequado, em razão dessa atipicidade, que se exclua o licitante do certame por ausência de condição legal para participação quando não comprovado o recolhimento ou quando rejeitada a garantia de proposta apresentada.

    Imprópria será a exigência de comprovação de recolhimento de quantia a título de garantia de proposta na hipótese de o edital não exigir qualquer requisito de qualificação econômica. Se o propósito da garantia de proposta é comprovar que o licitante possui lastro econômico-financeiro para participar do certame, inadequado exigi-la quando decidido pela administração a dispensabilidade de requisitos que visem atestar a idoneidade financeira dos participantes.

     

    Requisitos peculiares à exigência e cumprimento da garantia de proposta

    São requisitos peculiares à exigência e cumprimento da garantia de proposta em licitação:

    (a) realização, na fase preparatória da licitação, de estudos a respeito de sua viabilidade, utilidade, benefício e potencial caráter restritivo à competição;

    (b) caráter facultativo;

    (c) inaplicabilidade nas contratações diretas;

    (d) previsão expressa no edital sem a qual não poderá ser exigida;

    (e) percentual não superior a 1% (um por cento) do valor estimado da contratação, apurado (o valor) mediante a realização de pesquisa de preços praticados no mercado;

    (f) comprovação de recolhimento da quantia no momento da apresentação da proposta, independente do rito procedimental: o ordinário, do caput do art. 17, ou o que adota a inversão de fases, do §1º do art. 17 ;

    (g) estipulação, no edital, das condições e requisitos para a apresentação do documento comprobatório;

    (h) consequências da não comprovação no prazo e modo devidos;

    (i) adoção de uma das seguintes modalidades, à escolha do licitante: caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública emitidos sob a forma escritural, mediante registro em sistema centralizado de liquidação e de custódia autorizado pelo Banco Central do Brasil, e avaliados por seus valores econômicos, conforme definido pelo Ministério da Economia; seguro-garantia; ou fiança bancária emitida por banco ou instituição financeira devidamente autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil;

    (j) devolução aos licitantes no prazo de 10 (dez) dias úteis, contado da assinatura do contrato ou da data em que for declarada fracassada a licitação, vedada a estipulação de prazo superior a este; a ausência de estipulação no edital não afasta o direto do licitante à devolução da garantia de proposta por constituir dever da administração previsto em lei; e

    (k) perda do valor integral no caso de recusa do vencedor da disputa em assinar o contrato ou em razão da não apresentação de documentos para a contratação.

     

    Impossibilidade de calcular-se a garantia de proposta em licitação que adota o sigilo do orçamento

    De acordo com o art. 58 da Lei nº 14.133/2021, poderá ser exigida no momento da apresentação da proposta, desde que prevista no edital, a comprovação de recolhimento, pelo licitante, de quantia a título de garantia de proposta, como requisito de pré-habilitação. Dita garantia não poderá ser superior a 1% (um por cento) do valor estimado para a contratação (§1º). De outro lado, a Lei estabelece que desde que justificado pelo agente público competente, o orçamento estimado da contratação poderá ter caráter sigiloso, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas. O valor ou orçamento previamente estimado da contratação deverá ser compatível com os valores praticados pelo mercado, considerados os preços constantes de bancos de dados públicos e as quantidades a serem contratadas, observadas a potencial economia de escala e as peculiaridades do local de execução do objeto (art. 23). Compete, pois, à administração licitante definir, previamente, o orçamento (ou valor) estimado do objeto da licitação, por meio da realização de pesquisa de preços praticados pelo mercado, decidindo-se, em seguida, se o mesmo (orçamento) será sigiloso ou não.

    A adoção de orçamento estimado sigiloso em edital de licitação não se coaduna com a exigência de comprovação de garantia de proposta de até 1% (um por cento), prevista no art. 58. Sendo o orçamento estimado sigiloso, não há como os licitantes calcularem o percentual de garantia de proposta sobre valor estimado pela administração que não conhecem. Nem se pode argumentar que o percentual de garantia de proposta poderá ser calculado com base na proposta a ser ofertada pelo licitante se assim for definido no edital. A Lei não deixa dúvidas: o percentual de garantia de proposta deve adotar como referência o valor atribuído pela administração ao objeto da licitação, ou seja, a mesma base de cálculo para todos os licitantes, em cumprimento ao princípio da isonomia. Visualizam-se os problemas advindos da exigência de garantia de proposta em editais de licitação que adotarem o sigilo do orçamento estimado, influenciadores de seu afastamento.

     

    Garantia de proposta em sistema operacional eletrônico que veda a identificação de licitante

    Em sistema operacional eletrônico de licitações em que for vedada a identificação do licitante pelo agente ou comissão de contratação ou pregoeiro, como ocorre com o pregão eletrônico regido pelo Decreto federal nº 10.024/2019 (art. 30, §5º), há que se prever mecanismo de sigilo da garantia de proposta, tendo em vista que a apresentação desse documento (comprobatório da garantia), segundo o caput do art. 58, realiza-se na fase inicial do procedimento licitatório, ou seja, no momento da apresentação da proposta. Com a adoção de um mecanismo que torna sigiloso o autor do garantia de proposta, evita-se que os condutores do certame conheçam os participantes.

     

    *Marinês Restelatto Dotti. Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora de livros e artigos jurídicos. Professora em cursos de Pós-Graduação em Direito Público. Conferencista na área de licitações e contratações da administração pública. Currículo atualizado: http://lattes.cnpq.br