Opinião

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    DESEMPENHO EFICIENTE DE FUNÇÕES PÚBLICAS

     

     

    *Marinês Restelatto Dotti

      

     

    Resumo: Previamente à responsabilização do agente público, de que poderá culminar a perda do cargo em razão de comprovado mau desempenho, é necessário que a instituição: (a) forneça-lhe os indispensáveis meios para sua contínua qualificação; (b) estabeleça as metas a serem alcançadas; (c) privilegie a escolha de funções de confiança e cargos comissionados por meio de um processo seletivo que avalie expertises, habilidades, comprometimento e rotatividade (alternância); e (d) pratique modelo de gestão compartilhada.

    Sumário: 1. Introdução. 2. Capacitação e qualificação de agentes públicos. 3. Desvio de função. 4. Escolha de funções de confiança e cargos comissionados. 5. Gestão compartilhada. 6. Conclusão.

    Palavras-chave: Perda da função. Capacitação. Funções e cargos de chefia e direção. Meritocracia. Boa administração.

     

     

     

    1. Introdução

    Foi publicado em veículo de comunicação[1] a seguinte manchete: “88% apoiam demissão de servidores com mau desempenho, aponta Datafolha. Para o cidadão, serviço público precisa de avaliação, seguida de prêmio ou punição”.

    A perda do cargo por mau desempenho de servidores públicos foi instituída na Constituição Federal de 1988 pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998, ou seja, há mais de duas décadas, cujo teor é o que segue:

    Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.

    § 1º O servidor público estável só perderá o cargo:          

    I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado;          

    II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa;

    III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.    

     

    Louvável a inserção de mecanismos para avaliar e, ao fim, afastar servidores públicos que não comprovem o regular desempenho de suas funções, assim como, é justo que se premie aqueles que participam e contribuem para os bons resultados alcançados por instituições públicas, afinal, um dos princípios insculpidos na Constituição Federal aplicável à administração pública é o da eficiência. No entanto, verifica-se um reduzido ou quase inexistente sistema de premiação aplicável a servidores públicos em razão de sério, dinâmico e satisfatório desempenho funcional. Há a concessão de cargos comissionados de chefia e direção a servidores públicos, é bem verdade, mas não raro baseada em escolhas pessoais amparadas em apoio recíproco, relações de amizade e até acomodações partidárias.

    Ante o sistema jurídico vigente, qual seja o de que após avaliação prévia, assegurada a ampla defesa, o servidor poderá perder o cargo em razão de mau desempenho, exsurgem as seguintes indagações: as instituições públicas, em regra, estabelecem metas a serem alcançadas pelos seus agentes, as quais, se não atendidas podem ensejar a perda do cargo do servidor? As instituições estimulam a capacitação e o aperfeiçoamento de seus agentes para que estes desempenhem satisfatoriamente suas atribuições, cumprindo-se, assim, o princípio da eficiência? É legítimo que as instituições se valham do desvio de função para o efeito de alcançarem suas finalidades? Os cargos de chefia e direção são qualificados para o desempenho de suas atribuições, para estabelecerem metas e para estimularem o cumprimento exemplar de atividades a serem desenvolvidas pelos subordinados?

    Em resumo, as instituições ao mesmo tempo em que estabelecem sistemas de avaliação de seus servidores proporcionam mecanismos eficazes para que estes alcancem os resultados esperados?

     

    2. Capacitação e qualificação de agentes públicos

    A atual dinâmica de trabalho, em qualquer setor da sociedade, seja público ou privado, exige decisões rápidas e a celeridade dos tempos modernos torna o conhecimento técnico e especializado uma ferramenta indispensável e em constante evolução. Daí a importância e indiscutível necessidade de capacitar e qualificar o corpo técnico desses setores. A experiência mostra que, em diversos contextos, as pessoas erram e nem sempre querem acertar. Continuam errando sistematicamente alicerçados na justificativa de que “sempre se fez assim” ou “por que mudar?”. Esse pressuposto psicológico ressalta a racionalidade limitada dos indivíduos nos processos concretos de tomada de decisão. É preciso, por isso, descortinar-lhes o universo de atualidades e alternativas existentes. A eficácia e a eficiência das atividades executadas por agentes públicos, em qualquer setor da administração pública, estão diretamente relacionadas à permanente formação profissional, daí ser imprescindível adotar uma política de pessoal que contemple o treinamento criterioso e continuado e, ainda, que descortine as responsabilidades a que estão sujeitos.

     

    3. Desvio de função

    O edital de abertura do concurso público, que é considerado a lei do certame, descreve a habilitação exigida para o exercício dos cargos e as atribuições correspondentes. Contudo, nem sempre o aprovado é designado para exercer as atividades legalmente previstas para o cargo que assume. Nessa hipótese, configura-se o desvio de função. O desvio de função produz efeitos jurídicos e ônus para o Estado. Apesar de o agente público não poder ser promovido ou reenquadrado no cargo que ocupa em desvio de função, tem ele direito a receber diferença salarial pelo desempenho das funções exercidas. É o que estabelece a Súmula 378 do Superior Tribunal de Justiça, cujo teor reproduz-se: “Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes”.

     

    4. Escolha de funções de confiança e cargos comissionados

    O ideal de profissionalização da administração pública deve encontrar supedâneo na prestação de atividades finalísticas exclusivamente por pessoas selecionadas por meio de concurso público e no afastamento da deletéria prática do desvio de função. Eleva-se o grau de profissionalização e, por conseguinte, de governança pública, por meio do preenchimento de funções de confiança e de cargos comissionados selecionados exclusivamente da organização pública, ou seja, preenchidos exclusivamente por agentes ocupantes de cargos efetivos, escolhidos por meio de um processo seletivo que avalie expertises, habilidades, comprometimento, liderança e rotatividade (alternância). A liderança, segundo o Decreto federal nº 9.203/2017, compreende um conjunto de práticas de natureza humana ou comportamental exercida nos principais cargos das organizações, visando assegurar a existência de condições mínimas para o exercício da boa governança, quais sejam: a) integridade; b) competência; c) responsabilidade; e d) motivação. O preenchimento de funções e cargos de chefia e direção por meio de apoio recíproco, relações de amizade e, não raro, acomodações partidárias, compromete a segurança jurídica e cria lideranças vocacionadas a agirem de acordo com seus próprios interesses. Com efeito, pela adoção de um modelo que elege os ocupantes de funções de confiança e de cargos comissionados exclusivamente da organização pública, baseado em um processo seletivo objetivo que privilegie a meritocracia, troca-se o líder arrivista pelo realista, o alienado pelo mais preparado.

     

    5. Gestão compartilhada

    Selecionados os perfis de competência para o exercício de funções e cargos de direção e chefia, por meio de processo seletivo que privilegie a meritocracia, adota-se um modelo de gestão compartilhada, por meio da formação de grupos setorizados, capacitados e coordenados por tais funções e cargos, em que as atribuições, responsabilidades e metas são definidas para o grupo, em interação com as atribuições e responsabilidades de outros grupos afins. Em outras palavras, substitui-se o modelo verticalizado de chefia por um modelo de responsabilidades e metas compartilhadas. Se o interesse público é a finalidade que move a atividade administrativa, indiferenciado, portanto, entre os agentes públicos, por que não juntarem suas forças para o alcance do que é comum?  A quebra da eficiência também é fruto do fisiologismo no serviço público, não raro voltada para armar escadas para grupos determinados, em detrimento do alcance de um ideal comum, do salutar compartilhamento de soluções e, ao fim, do fortalecimento da própria organização.

     

    6. Conclusão

    Previamente à responsabilização do agente público, conforme estatuído no art. 41, §1º, inciso III, da Constituição Federal, de que poderá culminar a perda do cargo em razão de comprovado mau desempenho, é necessário que a instituição: (a) forneça-lhe os indispensáveis meios para sua contínua qualificação; (b) estabeleça as metas a serem alcançadas; (c) privilegie a escolha de funções de confiança e cargos comissionados por meio de um processo seletivo que avalie expertises, habilidades, comprometimento e rotatividade (alternância); e (d) pratique modelo de gestão compartilhada.

    O desafio às instituições é implementar tais medidas acompanhadas de um esforço físico, intelectual e moral de seus líderes, aptos a influenciarem seus agentes a atuarem de forma ágil, atualizada, eficaz, comprometida com interesse público e compartilhada, imprimindo-se a tão desejada eficiência administrativa. Eis os caminhos inexoráveis, sob pena de prosseguirmos oferecendo as mesmas respostas, insuficientes para a efetividade do direito fundamental à boa administração.

     


    [1]           https://www1-folha-uol-com-br.cdn.ampproject.org/c/s/www1.folha.uol.com.br/amp/mercado/2020/01/88-apoiam-demissao-de-servidores-com-mau-desempenho-aponta-datafolha.shtml?fbclid=IwAR2cxrh2zV81FhX5UfqAeRXMQkbfQh1-a9jv0KtgsLEToJ1_dbJ3B3wUZSY

     

     

    *Marinês Restelatto DottiAdvogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora da seguinte obra: Governança nas contratações públicas - Aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência - Inter-relação com o direito fundamental à boa administração e o combate à corrupção. Coautora das seguintes obras: (a) Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas; (b) Limitações constitucionais da atividade contratual da administração pública; (c) Convênios e outros instrumentos de Administração Consensual na gestão pública do século XXI. Restrições em ano eleitoral; (d) Da responsabilidade de agentes públicos e privados nos processos administrativos de licitação e contratação; (e) Gestão e probidade na parceria entre Estado, OS e OSCIP; (f) Microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas nas contratações públicas; (g) Comentários ao RDC integrado ao sistema brasileiro de licitações e contratações públicas; (h) 1000 perguntas e respostas necessárias sobre licitação e contrato administrativo na ordem jurídica brasileira; e (i) Comentários à lei das empresas estatais: Lei nº 13.303/16. Colaboradora nas obras: (a) Direito do estado: Novas tendências; (b) Direito Público do Trabalho - Estudos em homenagem a Ivan D. Rodrigues Alves; (c) Contratações públicas - Estudos em homenagem ao professor Carlos Pinto Coelho Motta; (d) Licitações públicas - Estudos em homenagem ao jurista Jorge Ulisses Jacoby Fernandes; (e) Comentários ao sistema legal brasileiro de licitações e contratos administrativos; e (f) Temas Atuais de Direito Público. Professora nos cursos de: Pós-Graduação em Direito Público com ênfase em Direito Administrativo da UniRitter - Laureate International Universities e em Direito Administrativo e Gestão Pública da Fundação Escola Superior do Ministério Público no Estado do Rio Grande do Sul. Professora nos seguintes cursos de extensão: “Capacitação em Licitações e Contratos Administrativos” da Escola da Magistratura no Estado do Rio Grande do Sul, “Prática em Licitações e Contratações Públicas” e “Prática em Licitações e Contratações das Empresas Estatais” da Escola Superior da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul.