Opinião

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    CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO PRIVADO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

    *Marinês Restelatto Dotti 

     

    A regra para a contratação de serviços advocatícios é a licitação. Contudo, certas situações, quando encaradas sob a perspectiva de compra e venda, se subvertem, isto é, no caso de serviço advocatício, o elemento confiança, que integra o conceito de melhor técnica, se perde quando se busca um profissional pelo menor preço a partir da licitação. Daí a Lei nº 8.666/1993 conferir à administração pública a possibilidade de contratar a prestação de serviço advocatício de forma direta, amparada na inexigibilidade de licitação.

    Segundo o art. 25, inciso II, da Lei nº 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações), é inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 da mesma Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização. Consideram-se serviços técnicos profissionais especializados, exercidos por advogados, os trabalhos relativos a assessorias ou consultorias e, ainda, o patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas.

    Inexigibilidade constitui exceção que deve ser precedida da comprovação da inviabilidade fática ou jurídica da competição. A prestação de serviços advocatícios pode desenvolver-se, como mencionado, na área de assessoria e consultoria jurídicas, por meio da emissão de pareceres, e do patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas. Para que a contratação direta encontre fundamento na inexigibilidade de licitação, contudo, é preciso demonstrar-se a singularidade do objeto da contratação e a notória especialização do profissional.

    Da edição nº 97 (licitações), da publicação “Jurisprudência em Teses”, do STJ, extrai-se que:

    A contratação de advogados pela administração pública, mediante procedimento de inexigibilidade de licitação, deve ser devidamente justificada com a demonstração de que os serviços possuem natureza singular e com a indicação dos motivos pelos quais se entende que o profissional detém notória especialização.

     

    O serviço é singular quando portador de uma tal complexidade que o torna diferente dos da mesma espécie, e que, consequentemente, só pode ser executado por profissional de especial qualificação. Traduz-se em serviço técnico incomum, raro, incomparável com outros, sem dar condições para que se proceda a qualquer competição entre os profissionais do ramo.

    Recentemente, contudo, foi publicada a Lei nº 14.039/2020, que alterou a Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da OAB),  estabelecedora de que os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização. As mídias, impressa e eletrônica, noticiaram, então, a criação de nova hipótese de "dispensa de licitação" para a contratação de advogado. Equivocada a informação. Referido diploma veio a dispor sobre a natureza técnica e singular dos serviços prestados por advogados e, também, por profissionais de contabilidade. De acordo com a Lei nº 14.039/2020, toda e qualquer atividade exercida pelo profissional do Direito notabiliza-se pela singularidade, que deve estar conjugada com a notória especialização do profissional ou equipe de profissionais.

    Considera-se notória especialização, segundo o art. 25, §1º, da Lei nº 8.666/1993 (também definida no art. 30, §1º, da Lei nº 13.303/2016 e no parágrafo único do art. 3º-A da Lei nº 14.039/2020), o profissional ou a empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. A notória especialização, pois, é aquela de caráter absolutamente extraordinário e incontestável – que fala por si. É posição excepcional, que põe o profissional no ápice de sua carreira e do reconhecimento, espontâneo, no mundo do Direito, mesmo que regional, seja pela longa e profunda dedicação a um tema, seja pela publicação de obras e exercício da atividade docente em instituições de prestígio.

    O voto do ministro Luís Roberto Barroso, na Ação Direta de Constitucionalidade nº 45 (número único 4003252-92.2016.1.00.0000), a respeito da constitucionalidade dos artigos 13, inciso V, e 25, inciso II, da Lei nº 8.666/1993, que tratam, respectivamente, da qualificação dos serviços técnicos profissionais especializados e das hipóteses de inviabilidade de licitação, elencou, além da notória especialização do profissional a ser contratado e da natureza singular do serviço, outros três requisitos indispensáveis à legitimidade da contratação direta de advogados com base na inexigibilidade de licitação. São eles: “necessidade de procedimento administrativo formal”; “contratação pelo preço de mercado” e “inadequação da prestação do serviço pelo quadro próprio do Poder Público”.

    A “necessidade de procedimento administrativo formal” é velha conhecida da administração pública. Encontra previsão no art. 1º da Lei nº 8.159/1991 que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e estabelece como dever do poder público, a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivos, como instrumento de apoio à administração e como elemento de prova e informação e, ainda, no parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/1993, segundo o qual o “processo” de dispensa ou de inexigibilidade será instruído com os elementos que o mesmo dispositivo indica.

    A “contratação pelo preço de mercado” também encontra previsão no parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/1993. Seu inciso III  relaciona como um dos elementos obrigatórios a constar no processo da contratação a justificativa do preço. Tão importante é o atendimento desse requisito legal que segundo o art. 25, §2º, da Lei nº 8.666/1993, na hipótese de inexigibilidade e em qualquer dos casos de dispensa de licitação, se comprovado superfaturamento, respondem solidariamente pelo dano causado à Fazenda Pública o fornecedor ou o prestador de serviços e o agente público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis. Além disso, constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário permitir ou facilitar a aquisição de bem ou serviço por preço superior ao de mercado (art. 10, inciso V, da Lei nº 8.429/1992). O art. 7º da Instrução Normativa nº 73/2020, do Secretário de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, que dispõe sobre o procedimento administrativo para a realização de pesquisa de preços para a aquisição de bens e contratação de serviços em geral, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, orienta como deve ser realizada a justificativa do preço em contratações baseadas na inexigibilidade de licitação.

    Especial atenção deverá ter o gestor público para que a atividade terceirizada ao advogado privado, contratado por meio de inexigibilidade de licitação, não seja também desempenhada por quadro próprio de advogados públicos da instituição. Segundo o voto do ministro Luís Roberto Barroso, a “disciplina constitucional da advocacia pública (arts. 131 e 132, da CF) impõe que, em regra, a assessoria jurídica das entidades federativas, tanto na vertente consultiva como na defesa em juízo, caiba aos advogados públicos.” Traduz-se o requisito previsto no voto, acerca da observância, pelo gestor contratante, de eventual “inadequação da prestação do serviço pelo quadro próprio do Poder Público”: a terceirização de atividades que são próprias do cargo público, in casu, de advogados públicos, infringe o disposto no art. 37, inciso II, da Constituição Federal, segundo o qual a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. Por isso, segundo o ministro, somente em caráter excepcional, desde que plenamente configurada a impossibilidade ou relevante inconveniência de que a atribuição seja exercida pelos membros da advocacia pública,  caberá a contratação direta de advogados privados.

     

     

     

    *Marinês Restelatto Dotti. Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora da seguinte obra: Governança nas contratações públicas - Aplicação efetiva de diretrizes, responsabilidade e transparência - Inter-relação com o direito fundamental à boa administração e o combate à corrupção. Coautora das seguintes obras: (a) Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas; (b) Limitações constitucionais da atividade contratual da administração pública; (c) Convênios e outros instrumentos de Administração Consensual na gestão pública do século XXI. Restrições em ano eleitoral; (d) Da responsabilidade de agentes públicos e privados nos processos administrativos de licitação e contratação; (e) Gestão e probidade na parceria entre Estado, OS e OSCIP; (f) Microempresas, empresas de pequeno porte e sociedades cooperativas nas contratações públicas; (g) Comentários ao RDC integrado ao sistema brasileiro de licitações e contratações públicas; (h) 1000 perguntas e respostas necessárias sobre licitação e contrato administrativo na ordem jurídica brasileira; e (i) Comentários à lei das empresas estatais: Lei nº 13.303/16. Colaboradora nas obras: (a) Direito do estado: Novas tendências; (b) Direito Público do Trabalho - Estudos em homenagem a Ivan D. Rodrigues Alves; (c) Contratações públicas - Estudos em homenagem ao professor Carlos Pinto Coelho Motta; (d) Licitações públicas - Estudos em homenagem ao jurista Jorge Ulisses Jacoby Fernandes; (e) Comentários ao sistema legal brasileiro de licitações e contratos administrativos; e (f) Temas Atuais de Direito Público. Professora nos cursos de: Pós-Graduação em Direito Público com ênfase em Direito Administrativo da UniRitter - Laureate International Universities e em Direito Administrativo e Gestão Pública da Fundação Escola Superior do Ministério Público no Estado do Rio Grande do Sul. Professora nos seguintes cursos de extensão: “Capacitação em Licitações e Contratos Administrativos” da Escola da Magistratura no Estado do Rio Grande do Sul, “Prática em Licitações e Contratações Públicas” e “Prática em Licitações e Contratações das Empresas Estatais” da Escola Superior da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul.  Conferencista na área de licitações e contratações da administração pública. Currículo: http://lattes.cnpq.br/