* Marinês Restelatto Dotti
Introdução
Em 1º de abril de 2021 foi publicada a Lei nº 14.133, denominada a nova lei de licitações e contratos administrativos, estabelecedora de normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo, ainda, órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa, e os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.
Consoante estabelece o art. 191 da Lei nº 14.133/2021, até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, ou seja, até 1º de abril de 2023, a administração pública poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com a nova lei ou de acordo com as Leis nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 ou os artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (RDC), e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada da Lei nº 14.133/2021 com as Leis nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 e os artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011.
Dois órgãos federais manifestaram-se acerca da imediata aplicabilidade da nova lei de licitações: o Tribunal de Contas da União e a Advocacia-Geral da União. Confira-se:
(a) Acórdão nº 2458/2021 - Plenário
A Secretaria de Licitações, Contratos e Patrimônio - Selip, do Tribunal de Contas da União, formulou consulta (TC-008.967/2021-0) ao seu órgão interno de Consultoria acerca da imediata aplicação da Lei nº 14.133/2021 aos contratos administrativos da própria Corte de Contas federal que, pelo valor estimado, enquadram-se na hipótese do art. 75, II, do supracitado normativo, para fins de adoção do regime de dispensa de licitação. Respondeu o órgão que:
ACORDAM os ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo relator, em:
9.1. responder à consulente, Secretaria-Geral de Administração (Segedam) , que:
9.1.1. é possível a utilização do art. 75 da Lei 14.133/2021 por órgãos não vinculados ao Sistema de Serviços Gerais (Sisg) , do grupo chamado órgãos "não-Sisg", em caráter transitório e excepcional, até que sejam concluídas as medidas necessárias ao efetivo acesso às funcionalidades do Portal Nacional de Contratações Públicas - PNCP;
9.1.2. em reforço à transparência que deve ser dada às contratações diretas, que seja utilizado o Diário Oficial da União - DOU como mecanismo complementar ao portal digital do TCU, em reforço à devida publicidade até a efetiva integração entre os sistemas internos e o PNCP;
9.2. orientar a Secretaria-Geral de Administração e a Secretaria-Geral da Presidência deste Tribunal que priorizem as ações para a devida integração dos sistemas internos do TCU com o PNCP. (Acórdão nº 2458/2021 - Plenário, Rel. Min. Augusto Nardes, Processo nº 008.967/2021-0).
(b) Parecer da Câmara Nacional de Modelos de Licitações e Contratos Administrativos
A Câmara Nacional de Modelos de Licitações e Contratos Administrativos da Consultoria-Geral da União, órgão da Advocacia-Geral da União, por meio do PARECER n. 00002/2021/CNMLC/CGU/AGU (NUP 00688.000716/2019-43), assim se posicionou a respeito da aplicabilidade das normas da nova lei de licitações (Lei nº 14.133/2021):
EMENTA: I - Análise jurídica de condicionamentos e requisitos para possibilidade de utilização da Lei nº 14.133/21 como fundamento para embasar licitações e/ou contratações. Necessidade de traçar um panorama de eficácia da lei para priorização dos modelos a serem elaborados e do cronograma para tanto.
II - A divulgação dos contratos e dos editais no Portal Nacional de Contratações Públicas - PNCP não pode ser substituída pelo DOU, sítio eletrônico do órgão ou outro meio de divulgação, sendo obrigatório, portanto, o PNCP;
III - O art. 70, II abre a possibilidade de registros cadastrais não-unificados para fins de substituição da documentação de habilitação;
IV - A implementação das medidas previstas no art. 19 da nova lei, incluindo os modelos, não é pré-requisito para que haja contratações pelo novo regramento, muito menos exige-se ônus argumentativo adicional para contratar-se antes de finalizadas tais medidas. Essa conclusão não aborda a eventual obrigatoriedade de uso de instrumentos que efetivamente existam;
V - Os arts. 7º, 11, parágrafo único e 169, §1º são consideradas como medidas preferenciais antes de proceder às contratações: recomenda-se que o gestor se prepare, iniciando gestão por competências/processos de controle interno antes de iniciar a aplicação da nova lei, sem prejuízo de, justificadamente, fazer contratações antes disso;
VI - O regulamento do art. 8º, §3º é necessário para a atuação do agente ou da comissão de contratação, equipe de apoio, fiscais e gestores contratuais. Como toda licitação necessita de agente/comissão de contratação e todo contrato de fiscal/gestor, isso implica, na prática, a impossibilidade de licitar ou contratar até que as condutas dos agentes respectivos sejam regulamentadas na forma do artigo em questão.
VII - É necessária a regulamentação de pesquisas de preços, tanto em geral quanto especificamente para obras e serviços de engenharia, para que elas sejam feitas com fundamento na nova lei;
VIII - A regulamentação da modalidade de Leilão e dos modos de disputa da Concorrência e do Pregão é necessária para o seu uso.
IX - Para o uso do SRP, é necessária a sua regulamentação, seja em geral, seja quando resultante de contratação direta;
X - É possível contratar sem a regulamentação do modelo de gestão do contrato, caso em que o próprio instrumento contratual deverá desenhar o modelo que seja adequado ao caso. Ainda assim, é recomendável que, nos casos de contratação com mão-de-obra, utilize-se de procedimentos de fiscalização trabalhista adequados à lei, análogos à IN 5/2017, por exemplo.
XI - Nos dois anos a que se refere o art. 191, o gestor poderá eleger se em determinada contratação se valerá dos comandos da Lei nº 8.666/93, da Lei nº 10.520/2002 e dos artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011, inclusive subsidiariamente, ou se adotará a Lei nº 14.133/2021, inclusive subsidiariamente, nos termos do art. 189;
XII - Em qualquer caso, é vedada a combinação entre a Lei no 14.133/21 e as Leis 8.666/93, 10.520/2002 e os arts. 1º a 47-A da Lei no 12.462/2011, conforme parte final do art. 191;
XIII - Não é possível a recepção de regulamentos das leis nº 8.666/93, 10.520/02 ou 12.462/11 para a Lei no 14.133/21, enquanto todas essas leis permanecerem em vigor, independentemente de compatibilidade de mérito, ressalvada a possibilidade de emissão de ato normativo, pela autoridade competente, ratificando o uso do regulamento para contratações sob a égide da nova legislação.
Legislação que alude expressamente à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002 e aos artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (RDC)
Segundo o art. 189 da Lei nº 14.133/2021, aplica-se este novo diploma às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 8.666/1993, à Lei nº 10.520/2002, e aos artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (RDC). São alguns exemplos de normas que aludem à aplicação da Lei nº 8.666/1993 e da Lei nº 10.520/2002:
(a) Lei n° 9.724/1998:
Art. 11. Aplica-se para as OMPS os limites estabelecidos no parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, alterada pela Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998.
O parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.666/1993 foi alterado para §1º, cujo texto é o que segue:
Art. 24. É dispensável a licitação:
I - para obras e serviços de engenharia de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea "a", do inciso I do artigo anterior, desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço ou ainda para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente;
II - para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea "a", do inciso II do artigo anterior e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez;
[...]
§ 1º Os percentuais referidos nos incisos I e II do caput deste artigo serão 20% (vinte por cento) para compras, obras e serviços contratados por consórcios públicos, sociedade de economia mista, empresa pública e por autarquia ou fundação qualificadas, na forma da lei, como Agências Executivas.
(b) Lei Complementar nº 123/2006:
Art. 49. Não se aplica o disposto nos arts. 47 e 48 desta Lei Complementar quando: [...] IV - a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos arts. 24 e 25 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48.
(c) Lei nº 13.303/2016
Art. 32. Nas licitações e contratos de que trata esta Lei serão observadas as seguintes diretrizes: [...] IV - adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520, de 17 de julho de 2002, para a aquisição de bens e serviços comuns, assim considerados aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado;
Com a revogação das Leis nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 e dos artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/2011 (RDC) aplicar-se-á a Lei nº 14.133/2021 à legislação que fizer referência expressa àqueles diplomas. Significa, na prática, utilizando-se as normas retro citadas como exemplos, que:
(a) Lei n° 9.724/1998: aplicar-se-á às Organizações Militares Prestadoras de Serviços da Marinha - OMPS o disposto no §2º do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, ou seja, serão duplicados para essas Organizações os valores referidos nos incisos I e II do art. 75 da nova lei de licitações [“valores inferiores a R$ 100.000,00 (cem mil reais) no caso de obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores” e “valores inferiores a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) no caso de outros serviços e compras”], nos moldes preconizados pelo §1º do art. 24 da Lei nº 8.666/1993;
(b) Lei Complementar nº 123/2006: não se aplicará o disposto nos artigos 47 e 48 desse diploma (Lei Complementar nº 123/2006) quando a licitação for dispensável ou inexigível, nos termos dos artigos 74 e 75 da Lei nº 14.133/2021, excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 75 da nova lei de licitações, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o disposto no inciso I do art. 48 da Lei Complementar; e
(c) Lei nº 13.303/2016: quando necessária a aquisição de bens e serviços comuns, atraente da modalidade pregão, as empresas estatais observarão as disposições da nova lei de licitações (Lei nº 14.133/2021) e do regulamento específico aplicável ao manejo dessa modalidade publicado no âmbito do respectivo ente federativo.
Aplicabilidade de regulamentos anteriores à nova lei de licitações
O PARECER n. 00002/2021/CNMLC/CGU/AGU (NUP 00688.000716/2019-43), da Advocacia-Geral da União, concluiu, a respeito da aplicabilidade de regulamentos anteriores à nova lei de licitações, que:
[...] XIII - Não é possível a recepção de regulamentos das leis nº 8.666/93, 10.520/02 ou 12.462/11 para a Lei nº 14.133/21, enquanto todas essas leis permanecerem em vigor, independentemente de compatibilidade de mérito, ressalvada a possibilidade de emissão de ato normativo, pela autoridade competente, ratificando o uso do regulamento para contratações sob a égide da nova legislação.
Consoante se extrai da referida manifestação jurídica, em combinação com o art. 191, inexistindo, tanto na Lei nº 14.133/2021, como em norma (ex.: decreto, instrução normativa) editada para o fim de regulamentar esse novo diploma, disposição acerca de determinado assunto, não se estenderão ou aplicarão as disposições das Leis nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 ou nº 12.462/2011 e seus regulamentos às licitações e contratações processadas com base na nova lei. Caso a norma editada para o fim de regulamentar a Lei nº 14.133/2021 estabeleça a aplicabilidade de norma anteriormente editada, regulamentadora da Lei nº 8.666/1993, Lei nº 10.520/2002 ou da Lei nº 12.462/2011, neste caso, por disposição expressa, aplica-se a norma anterior ao novo regime de licitações.
* Marinês Restelatto Dotti. Advogada da União. Especialista em Direito do Estado e em Direito e Economia pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autora de livros e artigos jurídicos. Professora em cursos de Pós-Graduação em Direito Público. Conferencista na área de licitações e contratações da administração pública. Currículo atualizado: http://lattes.cnpq.br/5561970349382628