*Luiz Cláudio de Azevedo Chaves
Resumo: A Constituição Federal, ao instituir o princípio do dever geral de licitar (art. 37, XXI), a todos os órgãos e entidades do Poder Público ou que recebam controle deste, ainda que de forma indireta, previu o dever de a Administração produzir cláusulas contratuais que permitam a garantir a efetividade da proposta, ou seja, que a remuneração alvitrada pelo contratado seja respeitada por todo o período de execução contratual. Um dos institutos que operacionalizam tal comando é o da revisão dos contratos, fulcrado na Teoria da Imprevisão e que encontra subsídio normativo no art. 65, II, “d” da Lei nº 8.666/1993 e no art. 124, II, “d” da Lei nº 14.133/2021. Nada obstante, muito se pergunta se é cabível a revisão também nos preços registrados em Ata de Registro de Preços, dadas as características próprias dessa ferramenta de contratação. Os objetivos deste trabalho é justamente esclarecer os pontos obscuros, lançando à luz os conceitos de cada um destes institutos jurídicos a fim de se estabilizar o entendimento sobre o tema.
Palavras-chave: Licitação. Contratos. Ata. Registro de Preços. Reequilíbrio econômico.
Abstract. The Federal Constitution, by instituting the principle of the General Duty to Bid (art. 37, XXI), to all bodies and entities of the Public Power or that receive control of it, even if indirectly, provided for the duty of the Administration to produce clauses contractual agreements that ensure the effectiveness of the proposal, that is, that the remuneration suggested by the contractor is respected throughout the entire period of contractual performance. One of the institutes that operationalize this command is the revision of contracts, based on the Theory of Unpredictability and which finds normative support in art. 65, II, d of L. 8,888.1993 and in art. 124, II, d of Law No. 14.133/2021. Nevertheless, many questions are asked whether it is appropriate to revise the prices recorded in the Price Registration Minutes, given the characteristics of this contracting tool. The objectives of this work are precisely to clarify the obscure points, bringing to light the concepts of each of these legal institutes in order to stabilize the understanding on the subject.
Keywords: Bidding. Contracts. Minutes Price Registration. economic rebalancing
Sumário. 1. Introdução. 2. A garantia constitucional da efetividade da proposta. 3. Teoria da Imprevisão: conceito, requisitos e aplicabilidade aos contratos administrativos. 4. O sistema de registro de preços como forma de contratar com a administração pública. 5. A relação jurídica nascida a partir da celebração da Ata de Registro de Preços. 6. Aplicação da Teoria da Imprevisão sobre a Ata de Registro de Preços e a impossibilidade jurídica de revisão dos preços registrados. 7. Possibilidade revisar os valores dos contratos oriundos das Atas de Registro de Preços. 8. Conclusões.
1. Introdução
Não é novidade que os órgãos e entidades do Poder Público encontram sérias dificuldades em adquirir coisas e contratar serviços cuja demanda se demonstra de difícil previsão. Isto porque o modelo tradicional de contratação por licitação pública é extremamente burocrático — mesmo considerando a modalidade pregão — tornando impossível uma resposta ágil para atendimento às suas necessidades. Some-se a isso o fato de que as reavaliações de demanda encontram barreiras na própria legislação de regência, como os limites para reduções e acréscimos quantitativos. Essas dificuldades obrigam os órgãos a manter grandes estoques dos produtos que utilizam e isso atrai inúmeros problemas, tais como desperdício ou perecimento de material, alto custo com a manutenção de grandes espaços físicos destinados aos galpões e almoxarifados, custo com mãos de obra (própria ou terceirizada). Também é relevante o problema do planejamento orçamentário. Ao dar preferência a fazer grandes estoques, o agente responsável pelo dimensionamento da aquisição sempre optará por prever um quantitativo de compra superior ao que planejaria normalmente caso tivesse maior agilidade nas compras. Com isso, temos um compromissamento do orçamento exacerbado, o qual prejudica outros projetos que poderiam ser desenvolvidos.
Até o advento do Decreto Federal nº 3.931/2001, o Sistema de Registro de Preços, instituído no art. 15, §3º da Lei nº 8.666/1993, era praticamente inutilizado pelos órgãos submetidos ao dever geral de licitar, passando, a partir de então, a ganhar cada vez mais espaço como modelo de contratação de coisas e serviços na Administração Pública, nas Estatais e também nas entidades dos chamado Sistema ‘S’.
O normativo federal acima citado, foi praticamente o primeiro a ser colocado em vigor e que trouxe melhores orientações de como poderia ser utilizado. Contribuiu decisivamente para a profusão de licitações nessa modelagem, o fato de o art. 8º Daquele decreto prever a possibilidade de outros órgãos se servirem de uma Ata já publicada, o que dispensava esse órgão de realizar a sua própria licitação, o que, sabidamente é altamente trabalhoso e envolve um risco considerável de fracasso, deserção ou má contratação. Para as empresas, se tornou um excelente negócio pois poderiam participar e vencer uma única licitação, mas alvitrarem vários contratos com outros órgãos. Basta relembrar que no ano de 2007, o Tribunal de Contas da União [1] analisou um caso em que, uma semana após publicada uma Ata de serviços de publicidade pelo Ministério da Saúde, o órgão recebeu nada menos do que 62 (sessenta e dois) pedidos de adesão externa de outros órgãos. Falando em números, um negócio cuja previsão era de 32 milhões de reais, em apenas uma semana, para a empresa beneficiária da Ata alçaria (não tenho informações precisas sobre a efetivação dos vários contratos) faturamento da ordem de 2 bilhões de reais.
Porém, essa ferramenta de contratação, em que pese rapidamente propagada, nasceu órfã de maiores estudos doutrinários acerca das implicações da sua utilização. Várias e várias questões controvertidas começaram a surgir, porém, no início e até o final da década de 2000 a economia no País se mostrava relativamente estável e o País vivia numa espécie de bolha de falsa estabilidade da inflação. Quando essa bolha estourou, a partir de 2010, começam a surgir problemas de manutenção dos preços registrados. Essa circunstância foi tornando a situação cada vez mais crítica à medida que a inflação e os demais números da economia começaram a cair. É nesse cenário que começam a surgir os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro dos preços registrados em Ata.
Muitos acontecimentos, inclusive os mais recentes, como a greve dos caminhoneiros (2018) e a pandemia do COVID 19 (2020) forçaram os beneficiários das atas a recusarem pedidos de entrega do produto registrado ou tentar obter a revisão dos preços, alegando desequilíbrio insuportável. Com isso, muitos órgãos passaram a se perguntar se seria possível o licitante ganhar uma licitação para Registro de Preços, com compromisso de manter o preço pelo período de vigência da Ata, o que raramente é inferior a 12 (doze) meses, e, após publicada a Ata, ver o preço registrado ser majorado com base na teoria da imprevisão.
Este trabalho tem por finalidade estabelecer os limites da aplicação da Teoria da Imprevisão no instituto jurídico da Ata de Registro de Preços, que é instrumento diverso do contrato e tem manejo distinto deste.
2. A garantia constitucional da efetividade da proposta
A Constituição da República estabelece o dever de a Administração contratante garantir, ao longo da execução do ajustado, a efetividade da proposta [2]. Por efetividade da proposta entenda-se o dever de a Administração manter o equilíbrio econômico-financeiro das cláusulas contratuais. Este equilíbrio é marcado pela relação de justiça entre os benefícios alvitrados pela Administração e a remuneração do contratado. Isto porque, ao formular a proposta, o proponente calcula todas as implicações decorrentes da execução para estabelecer o preço que considera justo e suficiente para ser remunerado. Dada a configuração da presunção de equilíbrio, passa a ser dever da Administração contratante manter o nível de remuneração do contratado por toda a execução.
Mas é certo que ao longo da execução podem haver intercorrências, algumas previsíveis, como o aumento do custo de insumos, mão de obra etc., ou imprevisíveis, como o atraso da administração no pagamento das faturas ou até fatos externos ao contrato, como as greves, por exemplo, que, em um cenário de normalidade, não seria possível presumir. Tais intercorrências têm potencial para abalar a relação de justiça e equilíbrio estabelecida com a assinatura do ajuste, pois pode impor ao contratado (também ao contratante) um ônus insuportável para o qual não se podia calcular no momento da precificação. Esse fenômeno pode levar à ruína de uma parte, em detrimento do enriquecimento sem causa da outra.
Três são os institutos que visam manter a relação de efetividade da proposta: a) a correção monetária; b) o reajuste; e, c) a revisão.
A correção monetária tem aplicação nos casos em que ocorre atraso no pagamento por parte da Administração contratante, desde que o atraso não se tenha originado com culpa do contratado. Trata-se de cláusula obrigatória em todo contrato administrativo, nos termos do art. 55, III da Lei no. 8.666/1993:
Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:
[...]
III - o preço e as condições de pagamento, os critérios, data-base e periodicidade do reajustamento de preços, os critérios de atualização monetária entre a data do adimplemento das obrigações e a do efetivo pagamento; (GN)
Na Nova lei de licitações, a previsão se acha no art. 92:
Art. 92. São necessárias em todo contrato cláusulas que estabeleçam:
[...]
V - o preço e as condições de pagamento, os critérios, a data-base e a periodicidade do reajustamento de preços e os critérios de atualização monetária entre a data do adimplemento das obrigações e a do efetivo pagamento;
Assim, a correção monetária deve ser paga sempre que a administração contratante atrasar os pagamentos, desde que não tenha havido culpa do contratado.
O segundo instituto, o reajuste, tem lugar para atualizar o valor do contrato, quando o mesmo se vê desequilibrado economicamente em decorrência da elevação do custo de execução, ou seja, a majoração dos preços dos insumos, mão de obra e outros custos mensuráveis. É considerada causa ordinária de desequilíbrio.
Tem periodicidade mínima de um ano a contar da data da proposta ou do orçamento a que ela ser referir, nos termos da Lei nº 10. 192/2001[3].
Finalmente, o terceiro, a revisão, deve ser utilizada sempre que houver ocorrência de fato imprevisível ou previsível, porém de consequências incalculáveis, constituindo fato extracontratual e extraordinário. É neste que o presente trabalho irá se concentrar.
3. Teoria da Imprevisão: conceito, requisitos e aplicabilidade aos contratos administrativos
É regra comezinha no campo do direito das obrigações que o contrato faz lei entre as partes, o que se acha estabilizado no brocardo pacta sunt servanda. Por assim dizer as obrigações contraídas pelas partes devem ser rigorosamente cumpridas, levando-se em conta à sua função social, bem como a boa fé entre os contratantes.
No entanto, após a celebração do ajuste, situações inéditas que não poderiam ter sido previstas pelas partes poderão dar azo à revisão das cláusulas ou mesmo subsidiar a resolução contratual, quando tais situações provoquem prejuízo para uma das partes e consequente enriquecimento ilícito da outra. Nesses casos, haverá a flexibilização da cláusula pacta sunt servanda, de modo a reequilibrar a relação jurídica havida no início da avença. Essa excepcionalidade vem descrita no artigo 393 do Código Civil:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
A regra da cláusula pacta sunt servanda deve ser lida e harmonizada com outro corolário do direito privado, que é a regra rebus sic stantibus, cujo entendimento é no sentido de que o contrato faz lei entre as partes, enquanto as coisas permanecerem na forma estabelecida na época do contrato. Trata-se do reconhecimento de que os contraentes acordaram levando em consideração as circunstâncias fáticas presentes ao tempo da sua celebração, podendo invocá-la como fundamento para o rompimento caso mudanças substanciais ocorram de forma extraordinária e imprevisíveis, que modificam o equilíbrio do acordo trazendo desvantagem a uma das partes. Foi o ponto de partida para a criação das bases da Teoria da Imprevisão, caracterizada no artigo 478 e segs. do Código Civil, que prevê a resolução do contrato, quando ocorrer à onerosidade excessiva em decorrência de fatos extraordinários e imprevisíveis:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Em exemplo disso, foi um fato vivido por uma massa de consumidores ocorrido em janeiro de 1999, que anotou uma maxidesvalorização do Real frente ao dólar americano. Nessa época, muitos consumidores haviam adquirido veículos importados com financiamento em prestações baseadas no dólar americano. Do dia para a noite, o dólar teve um aumento violento, o que provocou um reajuste nas prestações de ordem de mais de 200%, o que motivou o Ministério Público do Rio de Janeiro a propor uma ação civil pública para o fim de obrigar as financeiras a aceitarem o pagamento com base na cotação do dia anterior à explosão cambial.
Nos contratos administrativos, a aplicação da Teoria da Imprevisão é prevista no art. 65, II, ‘d’, da L. 8.666/1993:
Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
[...]
II - por acordo das partes:
[...]
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
Na nova lei de licitações e contratos, a redação é idêntica:
Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
[...]
II - por acordo entre as partes:
[...]
d) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato.
Tais dispositivos permitem a adequação do valor do contrato, de modo a possibilitar o retorno à situação de equilíbrio estabelecida no início do pacto. Trata-se do instituto da revisão.
Assim, a revisão do contrato (coloquialmente chamado de reequilíbrio), é o instituto por meio do qual a efetividade da proposta é retomada quando ocorre um fato externo ao contrato, imprevisível ou previsível, mas com desdobramentos muito acima do esperado, e que importem em impedimento ou retardo na execução do ajustado com a chamada onerosidade excessiva.
A revisão, quando presentes os seus requisitos formadores, deve ser deferida de imediato, pois estando o contrato em execução, haverá o comprometimento do cumprimento das obrigações do contratado, com claro prejuízo para ambas as partes contraentes.
4. O sistema de registro de preços como forma de contratar com a administração pública.
O Sistema de Registro de Preços é um conjunto de procedimentos efetivados mediante prévia licitação pública, que visa ao registro formal de preços para contratações futuras com o vencedor do torneio, chamado de beneficiário.
Realiza-se uma única licitação que selecionará a proposta mais vantajosa dentre as apresentadas, quase que nos mesmos moldes da licitação tradicional, com a diferença no sentido de que, ao invés de adjudicado o objeto ao vencedor no final do torneio, este terá seu preço registrado em Ata, que selará um compromisso futuro de, durante determinado período, não superior a um ano [4], em todas as vezes que a Administração necessitar e dentro das quantidades registradas, o beneficiário será obrigado a prestar.
É uma forma de contratação na qual a Administração Pública constitui uma espécie de cadastro de preços, fornecedores e quantitativos para o objeto colocado em disputa. Esse cadastro ficará à disposição da Administração (Gerenciador ou Participante) ao longo de um determinado tempo, dentro do qual a Administração poderá convocar as quantidades que desejar e lhe for necessárias, respeitados os quantitativos registrados.
O SRP não gera um contrato propriamente dito, mas uma Ata, que é o registro do compromisso futuro. Após sua publicação, a Ata se torna eficaz e passa a gerar tantos contratos quantos a Administração pretender celebrar, desde que respeitados os quantitativos nela especificados.
5. A relação jurídica nascida a partir da celebração da Ata de Registro de Preços
Como visto acima, a licitação para registros de preços não tem consequência prática imediata, como o é a licitação tradicional. Nesta, após homologado o resultado do certame, será gerado um contrato que, posto em execução, alcançará todas as quantidades descritas no ato convocatório.
Já na licitação para fins de registro de preços, após a homologação do seu resultado, o que será gerado é uma Ata, instrumento de características diversas do contrato, conforme leciona Marçal Justen Filho [5], verbis:
Contrato normativo constituído como um cadastro de produtos e fornecedores, selecionados mediante licitação, para contratações sucessivas de bens e serviços, respeitados lotes mínimos e outras condições previstas no edital.
Esse conceito veio reafirmado no atual regulamento federal para o SRP. Nos termos do art. 2º, II do Decreto Federal nº 7.892/2013,
II – ata de registro de preços - documento vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, em que se registram os preços, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no instrumento convocatório e propostas apresentadas;
Significa que a Ata não é contrato, mas um pré-contrato. Se as condições estabelecidas no pré-contrato se consolidarem, o contrato propriamente dito se aperfeiçoará. A ata servirá de fundamento de validade para as convocações (contratações) de quantitativos posteriores até o seu esgotamento, pelo prazo (máximo de um ano) ou das suas quantidades.
Em resumo, o vencedor da licitação não terá a seu favor um contrato, mas a possibilidade de, ao longo da vigência da Ata, celebrar tantos quantos contratos forem possíveis, diante das quantidades registradas.
6. Aplicação da Teoria da Imprevisão sobre a Ata de Registro de Preços e a impossibilidade jurídica de revisão dos preços registrados
Em que pese constituir documento obrigacional de natureza distinta do contrato, por óbvio que durante a vigência da Ata poderá ocorrer um fato não previsível ou cuja previsibilidade não alcançava as proporções em que ocorreram.
A Ata gera, para o beneficiário, a obrigação de manter inalterado o preço registrado e atender a todas as convocações do órgão que promoveu a licitação (Gerenciador) e dos demais que integraram o processo ab inicio (órgãos participantes). Por isso, deve-se reconhecer que, mesmo não se constituindo em um contrato típico, situações extracontratuais e extraordinárias poderão inviabilizar ou tornar excessivamente onerosa tal obrigação. Daí a previsão do art. 17 do Decreto Federal nº 7.892/2013:
Art. 17. Os preços registrados poderão ser revistos em decorrência de eventual redução dos preços praticados no mercado ou de fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados, cabendo ao órgão gerenciador promover as negociações junto aos fornecedores, observadas as disposições contidas na alínea “d” do inciso II do caput do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993.
Reconheço que há certa confusão quanto à possibilidade ou não de aplicação da Teoria da Imprevisão, em razão do teor do dispositivo legal acima transcrito. Afinal, tal norma faz parecer que seria possível revisar os preços registrados em Ata. Porém, isso não é verdade.
A revisão visa evitar que a parte contraente assuma um prejuízo insuportável diante das obrigações assumidas. Se essas obrigações ainda não se tornaram exigíveis (somente o serão com a convocação), o fato de um preço registrado se tornar defasado em virtude de fato imprevisível, não trará qualquer consequência ao beneficiário, porquanto o mesmo não estará no cumprimento de qualquer obrigação contratual.
A leitura do art. 17 do Decreto Federal nº 7.892/2013 deve ser feita em conjunto com o art. 65, II, ‘d’ da Lei 8.666/1993 que ele próprio menciona. Como visto alhures, a revisão somente será possível diante da presença conjunta de dois requisitos: a) imprevisibilidade do fato desequilibrador; b) gravidade suficiente para impedir ou retardar a execução do contrato.
Ora, mesmo que tenha ocorrido um fato imprevisível e grave o suficiente para impedir a execução do contrato, enquanto não vier a convocação da Administração, o beneficiário (lembrando que ainda não podemos chamá-lo de contratado) não se encontrará em ruína, pois não tem obrigações contratuais a adimplir e que seriam imediatamente impactadas pelo fato extraordinário.
Nada obstante a redação turva do art. 17 do citado regulamento, mais adiante, precisamente no art. 19, o normatizador se incumbiu de descrever quais medidas deverão ser tomadas nos casos em que os preços registrados passarem a não mais ser suportáveis pelo beneficiário. Senão vejamos:
Art. 19. Quando o preço de mercado tornar-se superior aos preços registrados e o fornecedor não puder cumprir o compromisso, o órgão gerenciador poderá:
I – liberar o fornecedor do compromisso assumido, caso a comunicação ocorra antes do pedido de fornecimento, e sem aplicação da penalidade se confirmada a veracidade dos motivos e comprovantes apresentados; e
II - convocar os demais fornecedores para assegurar igual oportunidade de negociação.
Parágrafo único. Não havendo êxito nas negociações, o órgão gerenciador deverá proceder à revogação da ata de registro de preços, adotando as medidas cabíveis para obtenção da contratação mais vantajosa. (GN)
De notar que o próprio Decreto Federal não prevê a revisão (majoração) dos preços registrados, mas tão somente, a liberação do compromisso (de aceitar a convocação) assumido pelo beneficiário.
Isto porque, o reequilíbrio econômico financeiro pressupõe a existência de contrato, no qual as partes estabelecem obrigações recíprocas, cujo cumprimento obrigatório (pacta sunt servanda) acaba se tornando excessivamente oneroso para uma das partes (rebus sic standibus), em virtude de uma das ocorrências descritas no art. 65, II, d da Lei nº 8.666/1993 (fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado; caso de força maior ou caso fortuito; e, fato do príncipe). Ora, enquanto não houver obrigações para ambas as partes, não haverá encargos a serem igualados, o que somente ocorrerá a partir da celebração dos contratos.
Em se tratando de Registro de Preços, no entanto, como o próprio legislador cuidou de prever expressamente no artigo 15, §4º, da Lei nº 8.666/1993: a existência de preços registrados não obriga a Administração a firmar as contratações que deles poderão advir, ficando-lhe facultada a utilização de outros meios, respeitada a legislação relativa às licitações. Logo, a redação do art. 19 do Dec. 7.892/2013 não é defeituosa quando comparada com o art. 17 do mesmo regulamento. Bem ao revés, se mostra totalmente congruente com os fundamentos da Teoria da Imprevisão e com a norma fundamental que o regulamenta. Este último dispositivo serve ao fim de reconhecer que a Teoria da Imprevisão pode ser aplicada nas Atas de registro de Preços, porém, a solução para tal ocorrência não será a revisão do preço registrado, mas sim, a liberação do compromisso assumido, sem imposição de penalidade ao beneficiário. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo conta com farta jurisprudência nesse sentido. À guisa de exemplo, confira-se:
TC11987.989.16-7, Relator Conselheiro RENATO MARTINS COSTA: “Na mesma linha, reputo improcedente a crítica que recaiu sobre a vedação de reestabelecimento do equilíbrio financeiro prevista no item 3.1.2.1 do instrumento, uma vez que o entendimento jurisprudencial sobre o assunto caminha no sentido de que “cláusulas de reequilíbrio da equação econômica inicial do contrato não são admissíveis no sistema de registro de preços, por não haver como se aplicar a teoria da imprevisão quando estamos a tratar de Ata de Registro de Preços, e tampouco cabe à Administração o dever de tutelar a manutenção do exato patamar de lucratividade relacionado a preços registrados em Ata” (conf. TC-2541/003/11, relatado pelo eminente Substituto de Conselheiro Sammy Wurman; e TCs 282.989.13-6 e 414.989.13)
Também em harmonia com esse modo de pensar, a Câmara Permanente de Licitações e Contratos da Consultoria-Geral da União, já apontava para essa conclusão no Parecer nº 00001/2016/CPLCA/CGU/AGU, cuja ementa ficou assim consignada:
EMENTA:
I – Administrativo. Licitação. Ata de Registro de preços. Reajustabilidade. Incidência dos institutos de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. Impossibilidade.
[...]
V – Não cabe reajuste, repactuação ou reequilíbrio econômico (revisão econômica) em relação à Ata de registro de preços, uma vez que esses institutos estão relacionados à contratação (contrato administrativo em sentido amplo).
VI – O fato gerador da manutenção do equilíbrio econômico (reajuste, repactuação ou reequilíbrio econômico) deve ser reconhecido no âmbito da relação contratual firmada, pela autoridade competente, sem necessária interferência na Ata de registro de preços. (GN)
Mais recentemente, a Advocacia-Geral da União, voltou a se posicionar no mesmo diapasão, reafirmando à tese da impossibilidade de aplicação do instituto da revisão de preços registrados em Atas, fazendo-o por meio do Parecer nº 00211/2020/CONJUR-CGU/AGU[6], que restou assim ementado:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO.REGISTRO DE PREÇOS. ATA DE REGISTRO DE PERÇOS. TEORIA DA IMPREVISÃO. PANDEMIA COVID-19. REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DA ATA. IMPOSSIBILIDADE.
1. Consulta sobre a possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro da Ata de Registro de Preços nº 17/2020, cujo objeto é o compromisso firmado entre a Controladoria-Geral da União-CGU e a DATEN TECNOLOGIA LTDA para eventual aquisição de Desktops, incluindo demais acessórios, com garantia técnica on-site de 48 meses.
2. O instituto do reequilíbrio econômico-financeiro tem aplicação na relação contratual, não sendo extensível às Atas de Registro de Preços.
3. Não é possível juridicamente a revisão econômica para aumentar os valores registrados na Ata de Registro de Preços nº 17/2020, por não ser aplicável à espécie o instituto do reequilíbrio econômico-financeiro, bem como por não haver autorização nesse sentido no art. 19 do Decreto nº 7.892/2013. (GN)
Importante frisar que compete ao licitante formular sua proposta em condições de ser suportada pelo período de vigência previsto em edital para a Ata.
No entanto, o que se tem visto é que as licitações realizadas no Sistema de Registro de Preços vêm atraindo proponentes com perfil oposto a esse. O mais das vezes, os licitantes mergulham no preço, sabedores que não terão condições de suportá-lo pelo prazo de um ano, e, logo após a publicação da Ata, passam a “vender” adesões a outros órgãos. Passados poucos meses, alegam desequilíbrio para rever os preços registrados, ou simplesmente se esgueirar do compromisso assumido.
Sendo assim, é de se reconhecer a incompatibilidade do instituto da revisão dos contratos com a Ata de Registro de Preços.
7. Possibilidade revisar os valores dos contratos oriundos das Atas de Registro de Preços
Todavia, o mesmo não se dirá dos contratos celebrados com fulcro na Ata.
O art. 12, § 3º do Decreto Federal regente da espécie assim dispõe:
§ 3º Os contratos decorrentes do Sistema de Registro de Preços poderão ser alterados, observado o disposto no art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993.
Significa que se o beneficiário foi alçado à condição de contratado, encontrando-se no cumprimento da obrigação, poderá sofrer as consequências danosas de um fato imprevisível que cause onerosidade excessiva, fazendo jus à revisão dos preços contratados, o que não causará qualquer reflexo na Ata.
Bom destacar que devem ser considerados como contratados todos os beneficiários que foram convocados formalmente pelo Gerenciador ou participante. A formalização do ajuste que pode dar ensejo à revisão observará os ditames do art. 62, caput, da Lei 8.666/1993 ou qual estabelece que o instrumento do contrato pode ser substituído, dentre outros documentos, pela nota de empenho.
Como é cediço, o beneficiário não pode recursar as convocações por parte do órgão Gerenciador e participante. Só tem poder de recusar pedidos de órgãos não participantes (“caronas”). Assim, ao receber a Nota de Empenho (ou outro instrumento equivalente e com o mesmo objetivo), o beneficiário passa a se ver diante da obrigação de entregar os quantitativos nele mencionados, isto é, a relação jurídica, que, antes, era de compromisso futuro, aperfeiçoa-se em uma relação contratual de execução imediata. Sendo assim, a tão só emissão e recebimento da Nota de Empenho caracteriza a contratação e pode viabilizar a revisão dos valores contratados, conforme a AGU já se manifestou em hipótese análoga recente:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. TEORIA DA IMPREVISÃO. VARIAÇÃO CAMBIAL. ELEVAÇÃO DE CUSTOS. PANDEMIA (COVID-19).
[...]
2. O instituto do reequilíbrio econômico-financeiro tem aplicação na relação contratual, não sendo extensível às Atas de Registro de Preços.
3. A assinatura do Contrato, ao contemplar todos os itens registrados em Ata de Registro de Preços – ARP, extinguiu os efeitos do compromisso antes definidos na ARP. A relação passou a ser de natureza contratual, esta sim, passível de pedido de reequilíbrio. A recomposição para restabelecimento do equilíbrio deverá se centrar no Contrato, não na Ata. Impossibilidade de alteração da Ata.
[...]
10. Pela Possibilidade de revisão do contrato (recomposição) para restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro, observadas as recomendações.
Diante disso, forçoso reconhecer que é possível conceder o reequilíbrio econômico, porém restrito ao que efetivamente foi contratado, devendo ficar registrado que a eventual recomposição dos valores contratados não terá qualquer reflexo na Ata.
(a) é possível a aplicação da Teoria da Imprevisão nas Atas de Registro de Preços;
(b) por não se tratar de contrato, descabe majoração dos preços registrados, podendo, caso presentes os requisitos da imprevisibilidade do fato, bem como da onerosidade excessiva a retardar ou impedir o cumprimento da obrigação de entregar os quantitativos, ser liberado o beneficiário do compromisso assumido, convocando-se os demais na ordem de classificação para negociação ou revogar a ata;
(c) caso o beneficiário tenha sido convocado, o valor do contrato oriundo da ata poderá sofrer revisão, desde que preenchidas as condições acima, mas sem causar qualquer reflexo nos valore registrados nas Atas.
[1] TCU, Acórdão nº 1.478/2007, Plenário, Rel. Min. Valmir Campelo. No acórdão, ficou determinado que o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão revisse as regras para as adesões externas, o que somente foi feito no ano de 2013, com a edição do Decreto nº 7.892/2013, atualmente em vigor.
[2] Art. 37, XXI: XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (GN)
[3] Art. 3o Os contratos em que seja parte órgão ou entidade da Administração Pública direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, serão reajustados ou corrigidos monetariamente de acordo com as disposições desta Lei, e, no que com ela não conflitarem, da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993. § 1o A periodicidade anual nos contratos de que trata o caput deste artigo será contada a partir da data limite para apresentação da proposta ou do orçamento a que essa se referir.
[4] Lei n. 8.666/93, art. 15 § 3º, III.
[5] Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 15ª. Ed., Dialética: São Paulo, 2012, pág. 218.
[6] Disponível em: https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/46299 Acesso em 24/09/2021, às 11:58.
*Especialista em Direito Administrativo e professor da Escola Nacional de Serviços Urbanos-ENSUR e professor convidado da Fundação Getúlio Vargas e da PUC-Rio. Autor das obras: Curso Prático de Licitações-Os Segredos da Lei no. 8.666/93, Lumen Juris, 2011; Licitação Pública – Compra e Venda Governamental Para Leigos, Alta Books, 2016; A Atividade de Planejamento e Análise de Mercado nas Contratações Governamentais, JML, 2018; Gerenciamento de Riscos nas Aquisições e Contratações de Serviço da Administração Pública, Estatais e Sistema S, ed. JML, 2020.