Opinião

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    A TELEOLOGIA DA EXIGÊNCIA DE ESTUDOS TÉCNICOS PRELIMINARES NO PROCESSO DE CONTRATAÇÃO

    *Jessé Torres Pereira Junior

     

    A nova lei das licitações e contratações administrativas (nº 14.133/2021) transformou em norma impositiva de abrangência nacional a presença de figura criada por norma regulamentar federal (Instrução Normativa nº 40/2020), atribuindo-lhe extraordinária relevância na fase instrutória do processo administrativo das licitações e contratações. Nos termos da nova lei, a necessidade da contratação, direta ou mediante licitação, deve estar fundamentada em estudo técnico preliminar (artigos 6º XX, e 18, I e § 1º), documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação, seja esta precedida de licitação ou não. Tal estudo dará base ao anteprojeto, ao termo de referência ou ao projeto básico, a serem elaborados caso se conclua pela viabilidade da contratação. Cabe ao estudo técnico preliminar evidenciar e decompor o problema a ser resolvido e apresentar a melhor solução sob a perspectiva do interesse público, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação. Em suma, tal estudo indaga e responde sobre o que, o porquê e para que se pretende contratar.

    Estima-se que o como proceder dependerá da edição de cerca de cinquenta regulamentos, tal a extensão de conceitos operacionais e indicações rituais que a nova lei traz em suas mais de 1400 disposições (somadas as cabeças dos artigos com seus respectivos parágrafos, incisos e alíneas). Entre aqueles regulamentos já editados, sobreleva, na matéria de que aqui nos ocupamos, o art. 11, § 2º, do Decreto federal nº 10.947/2022, que regulamenta o inciso VII, do caput do art. 12 da Lei nº 14.133/2021, segundo o qual o processo de contratação será acompanhado de estudo técnico preliminar, termo de referência, anteprojeto ou projeto básico, ou seja, tais documentos devem instruir o processo administrativo da contratação, observada a regra da publicidade, ressalvadas as hipóteses de informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Desdobram-se, destarte, no plano regulamentar, a imprescindibilidade do estudo técnico preliminar e a sua repercussão sobre os demais documentos a serem produzidos durante a instrução de cada processo de contratação, de sorte a compor o cenário de legalidade, legitimidade e economicidade do que se pretende vir a contratar.

    O projeto básico e o termo de referência traduzem-se em documentos técnicos, que integrarão o edital como anexos (art. 25, § 3º), daí sua aptidão para orientar, vinculando, a elaboração de propostas pelos concorrentes e o seu julgamento pela administração. Tal relevância para os destinos da contratação indica que o projeto básico e o termo de referência devem ser desenvolvidos por profissionais ou equipes técnicas que atendam aos requisitos de qualificação referidos no art. 7º e seus incisos da Lei 14.133/2021, respeitados os impedimentos e vedações do art. 9º, cuja violação induzirá responsabilização. Se assim é, também os elaboradores do estudo técnico preliminar estarão ao alcance de responsabilização.

    Sujeita-se à responsabilização civil, administrativa e/ou penal aquele que elaborou estudo técnico preliminar, anteprojeto, projeto básico ou termo de referência viciado, seja agente público ou terceiro contratado pela administração. As responsabilidades são subjetivas, ou seja, sua configuração no caso concreto dependerá de análise e comprovação da conduta do agente (elemento subjetivo – culpa ou dolo). No âmbito civil e administrativo, a imputação de responsabilidade deriva de conduta dolosa ou caracterizada por manifesto erro grosseiro no exercício das atribuições do agente, ou seja, o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro, assim considerado o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia (art. 12, §1º, do Decreto nº 9.830/2019, que regulamenta o disposto nos artigos 20 a 30 do Decreto-Lei nº 4.657/1942, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com a redação da Lei nº 13.655/2018).

    Pessoas jurídicas contratadas pela administração pública para elaborarem anteprojetos, projeto básicos ou termos de referência também podem ser responsabilizadas no âmbito da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção, art. 3º), a qual dispõe sobre a responsabilidade objetiva, administrativa e civil, de pessoas jurídicas privadas pela prática de atos contrários à administração pública, nacional ou estrangeira, exercidos em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não. A responsabilidade objetiva é aquela atribuída ao agente (in casu, pessoa jurídica) sem cogitar-se do elemento subjetivo de sua conduta, ou seja, a atitude culposa ou dolosa do agente causador do dano é juridicamente irrelevante para o efeito de imputar-se a responsabilidade, que se consuma tão só em face do dano e do nexo entre ele e aquele que lhe deu causa.

    Diante de tantos documentos técnicos integrantes do devido processo legal das licitações e contratações administrativas, e da responsabilidade dos agentes públicos e privados que devam participar ou hajam participado de sua elaboração, o aplicador da Lei nº 14.133/2021 há de preocupar-se em traçar uma linha hermenêutica de interpretação que previna erros e desvios que possam aparentar dolo, culpa grave ou erro grosseiro.

    Aconselha-se, desde logo, dentre as escolas de interpretação da lei, a adoção da escola teleológica, que almeja entender e aplicar as normas da lei de acordo com a perenidade do interesse público primário (os valores e princípios que inspiram a ordem jurídica, tal como assentados na Constituição) e a mutabilidade dos interesses administrativos, sempre secundários em relação àqueles, dos quais não se podem desviar. E acolhida a ponderação que veio plasmar o art. 22 da Lei nº 13.655/2018, para que sejam considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

    Impõe-se advertir contra as armadilhas das escolas histórica e da exegese, que de tanto prestígio gozaram na evolução secular das ciências jurídicas. Nelas, prevaleciam quatro vetores interpretativos que o direito contemporâneo vem afastando: o da imobilização (a norma mantém o sentido do tempo em que foi criada); o do monopólio interpretativo do legislador (só quem elaborou a lei está legitimado a revelar-lhe o significado); o da continuidade (o futuro há de ser simétrico em relação aos valores e prioridades da cultura em que a lei foi produzida); e o da exclusividade (a lei é a única fonte de cognição do direito).

    No direito contemporâneo, nenhum desses vetores é aceitável e sua aplicação redundará em falseamento ou desvirtuamento da sadia aplicação das leis, hoje sujeitas a conflitos interpretativos açodados pelo manejo de tecnologias em prol da prevalência de interesses sectários. Como assinala o sociólogo italiano Domenico De Masi, “a novidade em relação aos séculos passados não está na distorção das percepções, mas no fato de que nós, modernos, ao contrário dos antigos, dispomos de fontes como o Eurostat e o ISTAT, que fornecem pontualmente informações coletadas e processadas com rigor metodológico. Hoje, como nunca antes, essas informações estatísticas estão ao alcance de todos, e todos podem saber a real situação das coisas. No entanto, de fato hoje, como nunca antes, proliferam as fake news, que, graças à internet, tornaram-se instrumentos letais de desorientação de massa, usados com toda a perícia necessária para que os destinatários indefesos mordam a isca. Se, no passado, a falta de informações corretas induzia a preencher o vazio com conjecturas e fazê-las passar por verdade, hoje não há desculpas nem atenuantes para os que constroem e espalham fake news: não se trata de brincalhões inconsequentes, mas de criminosos” (v. O Mundo Ainda É Jovem, p. 142. Trad. Sieni Cordeiro Campos e Reginaldo Francisco. Ed. Vestígio, São Paulo, 2019).

    A teoria jurídica deve, nos dias coevos, seguir outros caminhos para superar a tirania de leis supostamente supra históricas, dotadas de força sem princípios, carentes de coerência sistemática, ditadas por príncipes ou autocratas que invocam mandato divino para encobrir pretextos humanos (v. Soler, Sebastian. Interpretacion de la Ley, pp 119 e segs. Barcelona, Ediciones Ariel, 1962). É necessário fundar o direito em outra fonte de autoridade, em que prevaleçam a razão, o bem comum, a solidariedade, a integração homem/natureza e a efetividade da governança em busca de consensos e tomando decisão que os atendam. Com o antropocentrismo, que tende a encobrir a prevalência das personalidades egoístas, deve conciliar-se, quando não se sobrepor, o biocentrismo, que busca alertar a humanidade para a imperiosa preservação do meio ambiente.

     

    “À primeira vista, a ideia de direitos da Natureza pode causar algum estranhamento: talvez o mesmo que um dia causaram as propostas de direitos civis, direitos humanos, direitos de crianças e adolescentes... conceitos e lutas sociais passaram a tratar a Natureza como sujeito de direitos, e não como mero objeto de exploração. O desafio é a construção de uma nova ética de convívio entre os seres humanos e o mundo natural; uma ética que não passa, necessariamente, por manter os ecossistemas puros e intocados, mas pelo respeito a seus ciclos e capacidades, e a seus povos originários, abandonando as métricas economicistas pautadas pelo crescimento infinito, pela destruição ambiental e, consequentemente, pela desigualdade social” (v. Gudynas, Eduardo. Direitos da Natureza - Ética biocêntrica e políticas ambientais, pp 167 e segs. Trad. Igor Ojeda. São Paulo, Ed. Elefante, 2019).

     

    A Lei nº 14.133/2021 dedica numerosas disposições à proteção ao meio ambiente nas licitações e contratações administrativas, a que especial cuidado deverá dedicar a elaboração dos documentos técnicos do estudo preliminar, do anteprojeto, do projeto básico, do termo de referência, sob pena de chamarem-se à responsabilidade aqueles agentes, públicos e privados, pessoas físicas ou jurídicas, que os hajam desrespeitado (v. artigos 6º, XII, XVIII, h, XXIV, e, XXV, a; 25, § 6º; 34, § 1º; 45, I; 124, § 2º;137, § 2º, V). Daí a extraordinária importância de o intérprete da nova lei nutrir criteriosa atenção para verificar, em cada caso concreto, se todos os elementos da estrutura morfológica dos atos administrativos praticados (competência, forma, objeto, motivo e finalidade) hajam sido devidamente observados e comprovados na elaboração e aplicação daqueles documentos, vinculantes do êxito de cada contratação para o fim de retratar, efetivamente, o que havia, naquele contexto, de mais vantajoso para a gestão pública comprometida com o interesse do estado e da sociedade civil, ao que se extrai dos artigos 11 e 12 da nova lei. A completa e adequada instrução dos processos administrativos das licitações e contratações, nesses termos, passa a ser um valor fundamental da ordem jurídica, seguindo-se a visceral importância dos documentos técnicos definidos e exigidos pela Lei nº 14.133/2021, com o caráter de norma geral impositiva para a administração pública brasileira direta, autárquica e fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

     

     

    Jessé Torres Pereira Junior. Desembargador aposentado, conferencista emérito de direito administrativo, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, e presidente de seu Fórum Permanente de Governança Sustentável. Supervisor dos cursos de direito ambiental na Escola Superior de Administração Judiciária, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Professor convidado de cursos de especialização na Escola de Direito-Rio, da Fundação Getúlio Vargas, e na Escola Superior de Advocacia, da OAB/RJ. Autor articulista do projeto Governança da Educação, da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI).