*Jessé Torres Pereira Junior
Ao definir, em seu art. 6º, as modalidades de licitação, a Lei 14.133/21 destina a definitiva obsolescência o tradicional critério do valor estimado do objeto a contratar, de que o direito brasileiro sempre fez uso, desde o século XIX, para distinguir as principais modalidades de licitação.
Recorde-se a escala adotada pela Lei no 8.666/93, art. 23, para estabelecer qual a modalidade de licitação cabível em cada caso: (i) para obras e serviços de engenharia, de valor estimado até R$ 150.000,00, convite; até R$ 1.500.000,00, tomada de preços; acima de R$ 1.500.000,00, concorrência; (ii) para compras e serviços não referidos no item anterior, de valor estimado até R$ 80.000,00, convite; até R$ 650.000,00, tomada de preços; acima de R$ 650.000,00, concorrência.
As modalidades do concurso e do leilão não cogitavam desse valor estimado à vista da finalidade de cada qual: o concurso, para a escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, ou seja, o trabalho ainda viria a ser projetado, pelo que não se poderia estimar o valor de objeto inexistente ao início da licitação; o leilão, para a venda de bens móveis inservíveis à Administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou, ainda, a alienação de imóveis cuja aquisição pela Administração houvesse derivado de procedimentos judiciais ou de dação em pagamento, o significa operações de saída dos bens do patrimônio público, e, não, de ingresso.
O primeiro rompimento com o critério do valor estimado do objeto a contratar, para o fim de identificar a modalidade de licitação cabível no cotidiano administrativo brasileiro, se deu com a criação, pela Lei no 10.520/2002, da modalidade do pregão, própria para a contratação de objetos definidos como “comuns”, ou seja, portadores de características pelas quais são identificados no mercado de bens e serviços, vale dizer, os chamados “produtos de prateleira”, daí a irrelevância de se cogitar de seu valor para se saber qual seria a modalidade adequada de licitação. Qualquer que seja tal valor – variável em função de volume e quantidade a contratar -, tratando-se de objeto “comum”, a modalidade de licitação a empregar será o pregão.
A lei do pregão estabeleceu procedimento licitatório que se mostrou apto a reduzir o tempo médio de processamento e a propiciar redução no valor das propostas. Tais benefícios já se faziam presentes no pregão presencial – aquele em que os participantes comparecem à sessão de apresentação e julgamento de propostas e oferecimento de lances verbais. Seguiu-se o pregão eletrônico, em que a participação se dá mediante a remessa de propostas e lances via sistema eletrônico, o que acentuou o ganho em tempo de processamento e ampliou a participação de licitantes, induzindo maior competividade e redução de preços nas propostas. Nessas duas décadas de aplicação de sua legislação de regência, o pregão tornou-se a mais utilizada modalidade de licitação para a contratação de objetos comuns, no cotidiano da administração pública brasileira, em todas as esferas da federação.
Nada obstante, não se desconsidere a ponderável crítica que Marçal Justen Filho dirige ao pregão: “cantado em prosa e verso por ter permitido grande economia para os cofres públicos. Ninguém fala que o pregão beneficia enormemente as grandes empresas, que têm condições de praticar preços muito mais reduzidos. O pregão destruiu as pequenas e médias empresas, a ponto de o governo ter sido obrigado a criar benefícios diferenciados para as micro e pequenas empresas. Ou seja, os ganhos econômicos obtidos com o pregão são parcialmente compensados com os incentivos assegurados às micro e pequenas empresas. Mas o problema essencial do pregão é a consagração absoluta da chamada seleção adversa. O poder público não conhece aquilo que compra e o critério de escolha é o preço mais reduzido possível. Isso produz um incentivo ao mercado oferecer produtos imprestáveis por preço reduzido: o pregão conduz, em parte relevante dos casos, o governo a pagar pouco por algo que não vale nada. A redução do preço no pregão é acompanhada da redução da qualidade. A margem de lucro do licitante continua sempre a mesma. Não que o pregão não tenha trazido benefícios. É claro que trouxe. Mas a estruturação adotada permite desvios insuportáveis” (Gazeta do Povo, edição de 31.10.2019).
O fato é que o pregão remeteu a desuso as modalidades da tomada de preços e do convite. Não surpreende, portanto, que a nova lei das licitações haja eliminado a tomada de preços e o convite dentre as modalidades de licitação a serem reconhecidas pelo direito administrativo positivo brasileiro e praticadas no dia-a-dia da gestão pública federal, estadual, municipal e distrital. Veja-se, no art. 6o da nova lei, que as vetustas modalidades não mais figuram ao lado da concorrência (inciso XXXVIII), do concurso (inciso XXXIX), do leilão (inciso XL), do pregão (inciso XLI) e do diálogo competitivo (inciso XLII).
A par de eliminar o convite e a tomada de preços, o novo regime licitatório distingue a concorrência do pregão em razão dos “padrões de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais de mercado” (art. 29): se tais padrões forem os habituais de mercado para identificar o objeto a contratar, a modalidade será a do pregão; se tais padrões diferem dos habituais de mercado para identificar o objeto a contratar, a modalidade será a da concorrência, desinfluente o valor estimado que o objeto possa ter.
Daí não se deduza que o valor estimado do objeto a contratar não mais será apurado pela Administração, na fase preparatória do procedimento licitatório. Tal apuração continuará devida – e se alargará - para os fins previstos no art. 18, notadamente aqueles inscritos em seus incisos IV (“o orçamento estimado, com as composições dos preços utilizados para sua formação”), VIII (“a modalidade de licitação, o critério de julgamento, o modo de disputa e a adequação e eficiência da forma de combinação desses parâmetros, para os fins de seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, considerado todo o ciclo de vida do objeto”), IX (“a motivação circunstanciada das condições do edital, tais como justificativa de exigência de qualificação técnica, mediante indicação das parcelas de maior relevância técnica ou valor significativo do objeto, e de qualificação econômico-financeira, justificativa dos critérios de pontuação e julgamento das propostas técnicas, nas licitações com julgamento por melhor técnica ou técnica e preço, e justificativa das regras pertinentes à participação de empresas em consórcio”), e X (“a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual”).
Uma estimativa de valor que leve em conta tantos e tais fundamentos – sobretudo necessários para licitações e contratos de maior complexidade - decerto que exigirá preparo e qualificação dos agentes públicos partícipes de sua elaboração. Por isto que o art. 7o, II, quer que esses agentes preencham, entre outros requisitos, o de contar com “formação compatível ou qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo poder público”. A exigência não constitui, a rigor, novidade no direito público brasileiro. Já a recomenda o art. 39, § 2o, da Constituição da República, com a redação que lhe introduziu a Emenda no 19/1998 – “A União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados”.
É sabido que se vem multiplicando o número de escolas de governo instaladas e em operação no País, sobretudo nas esferas federal e estaduais. São conhecidas e reconhecidas por seus esforços as escolas da Advocacia Geral da União, dos Ministérios Públicos federal e estaduais, da Magistratura Nacional e dos Estados, de Corporações Militares. Mas a existência e o funcionamento dessas escolas – até onde é sabido – não bastam para suprir a necessidade de qualificação – sobretudo em assuntos atinentes a licitações e contratos, como propõe a nova lei – de agentes públicos, inclusive os municipais, que deverão atuar nesse mister, de modo a conhecer e manejar os matizes gerenciais e tecnológicos modernizadores da gestão da atividade contratual do estado, tal como incorporados pela Lei 14.133/21. Serão indispensáveis cursos permanentes de atualização e reciclagem desses agentes.
Retome-se o exame das modalidades.
O art. 28, § 2o, reproduz o art. 22, § 8o, da Lei no 8.666/93. Ambos vedam a criação de outras modalidades de licitação ou a combinação daquelas estabelecidas na lei. A razão sempre foi e continua sendo evidente: o destinatário da norma é o administrador público; a este se dirige a vedação, que o impede de, por ato administrativo (decreto, regulamento etc.), criar modalidade diversa daquelas previstas na lei de regência. Tampouco poderia ser contornada a vedação pelo artifício de combinarem-se características das modalidades da lei, de sorte a gerar uma modalidade híbrida; esta seria criação administrativa, não da lei. E somente lei federal pode criar modalidade de licitação. É o que se extrai do art. 22, XXVII, da Constituição da República.
A lei nova incorpora as conhecidas modalidades da concorrência, do pregão, do concurso e do leilão. Em termos procedimentais, não há, a rigor, novidades no modo (no sentido de rito) de realizar-se uma concorrência ou um pregão, ao que resulta da leitura do art. 17, a que remete o art. 29.
Na modalidade do concurso, a nova lei acrescenta o que já vinha sendo objeto de indicação em sede doutrinária e jurisprudencial, omissa que era a Lei no 8.666/93: adverte o art. 30, p. único, que “nos concursos destinados à elaboração de projeto, o vencedor deverá ceder à Administração Pública, nos termos do art. 92 desta Lei, todos os direitos patrimoniais relativos ao projeto e autorizar sua execução conforme juízo de conveniência e oportunidade das autoridades competentes”. Significa que ao vencedor do concurso não assiste o direito subjetivo, pelo só fato de ser o vencedor, de exigir que a Administração execute o seu projeto. A execução submete-se à discrição administrativa. Quanto à oportunidade e à conveniência, grife-se. Se e quando a autoridade administrativa entender de executar, o projeto haverá de ser aquele vencedor da licitação, ainda que venha a Administração a introduzir alterações em seu teor, nos termos autorizados pelo art. 92 e seus parágrafos.
Na modalidade do leilão, a novidade trazida pelo art. 31, em contraste com o lacônico regime enunciado na Lei no 8.666/93, reside em que “poderá ser cometido a leiloeiro oficial ou a servidor designado pela autoridade competente da Administração, e regulamento deverá dispor sobre seus procedimentos operacionais”. Mais novidades se encontram nos parágrafos e incisos do art. 31, destacando-se: se for oficial o leiloeiro, deverá ser selecionado mediante credenciamento ou licitação na modalidade pregão, adotado, como critério de julgamento das propostas entre os leiloeiros concorrentes, o de maior desconto para as comissões a serem cobradas; o edital do leilão será veiculado em sítio eletrônico, mas se admite a forma presencial em face de “comprovada inviabilidade técnica ou desvantagem para a Administração”. Veja-se que, aqui, há conceitos abertos – inviabilidade técnica ou desvantagem - que a Administração deverá preencher segundo as circunstâncias de cada caso, mediante obrigatória e fundamentada motivação, lançada nos autos do processo respectivo.
A inovação maior em tema de modalidades de licitação está na criação da modalidade do diálogo competitivo, figura desconhecida da legislação brasileira anterior, porém praticada no direito alienígena com reconhecido êxito, na conformidade do que se tem convencionado chamar de “administração consensual”, que acompanha o desenvolvimento da gestão pública no estado democrático de direito.
Andou bem a Lei ao incluir as modalidades de licitação nas definições arroladas em seu art. 6o, que, a exemplo do que ocorria com a Lei no 8.666/93, em artigo do mesmo número, também consolida conceitos operacionais, ou seja, os que valem para fins de aplicação da lei. Em seu inciso XLII, define o diálogo competitivo: “modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos”.
O art. 32, caput, adverte que a novel modalidade é de uso restrito a contratações de objeto a que corresponda o cenário factual descrito no inciso I: “a) inovação tecnológica ou técnica; b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração”.
O “e” que precede o terceiro requisito significa que se trata de exigências cumulativas, ou seja, para que seja cabível a modalidade do diálogo competitivo se impõe a presença concomitante dos três requisitos enumerados no inciso I, do art. 32, devidamente comprovados nos autos do respectivo processo administrativo. Comprovados, não apenas alegados. Tenha-se em mente que o uso dessa modalidade implica que a Administração leve em conta a contribuição dos particulares interessados na definição das características que deverá ter o objeto a ser contratado, bem como a estimativa de seu custo específico, vale dizer que esse diálogo influenciará, previamente, a definição da equação econômico-financeira do futuro contrato. Isto porque os futuros licitantes somente poderão compor suas propostas de preço e/ou técnicas, para apresentá-las à Administração, depois de definido o objeto a ser licitado através desse diálogo, e tal definição gerará consequências para a satisfação do direito subjetivo ao equilíbrio daquela equação, presente nas entrelinhas do art. 37, XXI, da Constituição da República – “[...] processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei [...]”. Em outras palavras, o uso impróprio do diálogo competitivo manchará o caso concreto de vícios de inconstitucionalidade e/ou de ilegalidade, a provocar a nulidade da licitação e do contrato que se lhe seguirá, com a responsabilização dos agentes públicos e privados que dele hajam participado.
A mesma linha de raciocínio preside a interpretação e a aplicação do inciso II, do art. 32, que restringe a modalidade do diálogo competitivo à pertinente identificação dos meios e das alternativas capazes de satisfazer as necessidades administrativas, destacando, em suas alíneas: “a solução técnica mais adequada; os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida; a estrutura jurídica ou financeira do contrato”.
Basta tal perfil normativo para se deduzir que a modalidade do diálogo competitivo é absolutamente incompatível com qualquer traço de aproximação das modalidades da concorrência e do pregão, constituindo modalidade efetivamente distinta e inovadora no direito brasileiro, a exigir instrução processual e rito procedimental peculiares. Daí o § 1o, do art. 32, desenhar, em doze incisos, o perfil de como a modalidade deve ser operada, enunciando prazos, vedações, cautelas e deveres, dos quais convém destacar o disposto no inciso XI (será conduzido por comissão de contratação composta de pelo menos três servidores efetivos, admitida a contratação de profissionais para assessoramento técnico da comissão).
Em arremate, traga-se à colação síntese de comentário do insigne professor Thiago Marrara, da Universidade de São Paulo, publicado na revista Consultor Jurídico, edição de 6 de janeiro de 2017:
“Das inúmeras modalidades licitatórias previstas na Diretiva Europeia 2014/24 para aquisição estatal de obras, serviços e bens, merece redobrada atenção o ‘diálogo concorrencial’, nome constante da versão oficial portuguesa da normativa, mas que, no Brasil, transformou-se em ‘diálogo competitivo’... Por trás desta opção legislativa figura inicialmente a constatação de que procedimentos marcados pelo diálogo lograram mais sucesso na promoção do comércio transfronteiriço, ou seja, mostraram-se mais aptos a promover a competição efetiva entre agentes econômicos dos mais diversos países membros da União... a grande vantagem do diálogo concorrencial reside na possibilidade de se abrir a licitação ao mercado antes mesmo da definição da minuta contratual, fugindo-se da tradição de contratação por adesão que marca o direito administrativo. Embora eficiente em alguns casos, a presunção de que o Estado seja capaz de elaborar as minutas de modo unilateral e isolado antes da fase externa da licitação, na prática, muitas vezes dá vida a contratos deficientes ou que não guardam aderência ao que o mercado oferece. Em piores cenários, a lógica da adesão resultante do isolamento dos órgãos contratantes e da impermeabilidade da fase interna, origina minutas defeituosas, irreais, demasiadamente obscuras ou completamente inviáveis, fazendo fracassar a licitação... Mais que romper com o dogma da contratação por adesão, o diálogo concorrencial afasta por definitivo a presunção de que o Estado é infalível, capaz de avaliar os incontáveis segmentos de mercado em todos os contextos, capaz de elaborar isoladamente as soluções de que necessita dentro dos mais diferentes e complexos ramos de atividade em que atua e, muitas vezes, sem os recursos humanos necessários para tanto. A modalidade em questão, em última instância, atribui à licitação muito mais que uma mera função de seleção do agente econômico que será contratado. Nela, a licitação assume uma função de aprendizado, de desenvolvimento e de inovação. Pelo diálogo, a licitação passa a gerar conhecimento, novos produtos e serviços em benefício do Estado, da efetividade de suas tarefas e do atendimento das necessidades coletivas. Todavia, a produção dos efeitos esperados – é indubitável – dependerá de agentes públicos devidamente preparados e pessoalmente engajados para atuar com respeito incondicional às normas da boa-fé, de isonomia e promoção da competição real, justa e ampla. Ausentes essas condições, o diálogo concorrencial correrá o risco de se transformar facilmente em um nicho de corrupção e de benefícios indevidos”.
*Jessé Torres Pereira Junior. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Conferencista emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Professor convidado de Direito Administrativo em cursos de especialização da FGV Direito Rio e da Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ. Presidente do Fórum Permanente de Gestão Pública Sustentável e Vice-presidente do Fórum Permanente de Transparência Pública e Probidade Administrativa da EMERJ. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros. Listado como árbitro no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Autor articulista do projeto Governança da Educação, da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI). Autor e coautor de livros e artigos em matéria de direito público.