Opinião

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    CONDUTORES DA LICITAÇÃO. VEDAÇÕES E IMPEDIMENTOS. APLICAÇÃO DA LINDB

    *Jessé Torres Pereira Junior

     

    Agentes da contratação, comissão de contratação e pregoeiro

    A Lei nº 14.133/21 veicula preocupação específica com os recursos humanos da Administração, envolvidos nas licitações e contratações. Tanto que lhes dedica capítulo próprio, o IV do Título I. Diversamente do que se observa na Lei nº 8.666/93, que a eles se refere nos artigos 3º, 9º, 38, 43, 51, 67 e 73.

    Em síntese, esse conjunto assistemático de disposições da lei sob revogação pressupõe a designação de agentes públicos para o exercício, singularmente ou em colegiado, de funções necessárias ao longo da licitação ou da execução do contrato, a saber: (a) na fase interna do processo, há agentes responsáveis pela especificação do objeto, pela apuração de seu valor de mercado, pela certificação da existência de recursos orçamentários suficientes para atender ao valor estimado da futura contratação, pela elaboração de pareceres técnicos, pela elaboração de minutas de editais e sua submissão à assessoria jurídica da Administração, providenciando, uma vez aprovada a minuta, a sua publicação; (b) na fase externa do processo, iniciada com a publicação do edital, há agentes responsáveis pelo apoio à autoridade competente para responder a pedidos de esclarecimentos ou de impugnação sobre o edital publicado, promovendo, se for o caso, sua alteração e republicação, pelo exame de documentos de habilitação e pelo julgamento de propostas técnicos ou de preço, bem como pelo julgamento de recursos administrativos interpostos contra atos de julgamento de documentos e propostas, pelos atos de adjudicação do objeto ao proponente vencedor e pela homologação do processo licitatório encerrado, convocando o adjudicatário para a formalização do contrato; (c) na execução do contrato, designam-se agentes para a gestão do contrato e a fiscalização de sua execução. Ou seja, quase duas dezenas de funções a serem cumpridas por agentes da Administração com variada formação e posicionados em diferentes graus hierárquicos.

    A nova lei define a qualificação que os agentes públicos devem preencher e os classifica em sete espécies, levando em conta a natureza do vínculo com a Administração e das competências e funções a cumprir, como se passa a extrair dos artigos 7º a 10:
i – autoridade máxima: decide por competências (aquelas definidas em lei ou regulamento) e designa agentes para o desempenho de funções essenciais ao processo;
ii - agente de contratação: condutor da licitação até a remessa dos autos à autoridade competente para a homologação de todo o processado; talvez seja o mais importante dentre todos os agentes participantes da licitação, tanto que é o único a contar com definição própria e específica no rol do art. 6º (“LX – pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento da licitação”); iii - equipe de apoio: auxilia o agente de contratação, qualquer que seja a modalidade (mantem-se a orientação da Lei do Pregão - 10.520/02 -, que criou a figura do pregoeiro e de sua equipe de apoio, de modo a caber ao primeiro tomar decisões individualmente, delas não compartilhando com a equipe; a nova lei ressalva, ao final do art. 8º, § 1º, que o agente de contratação dividirá sua responsabilidade “quando induzido a erro pela atuação da equipe”, a indicar que, nessa hipótese, ambos responderão – o agente de contratação e a equipe de apoio); iv – comissão de contratação (mínimo de três membros): designada no lugar do agente de contratação nas licitações que envolvam bens ou serviços especiais (v. art. 6o, XIV); v – fiscais e gestores de contratos: funções a serem estabelecidas por regulamento e exercidas com o apoio dos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno, a lembrar aplicação do art. 74, incisos e § 1, da Constituição Federal;
 vi – empresa ou profissional especializado: assessorar os agentes em licitação envolvente de bens ou serviços especiais (aqueles que, por sua alta heterogeneidade ou complexidade, não comportam as especificações usuais de mercado, por isto que a respectiva contratação exige justificativa prévia, tal como explicita o inciso XIV, do art. 6º);  vii – pregoeiro.
Resulta evidente que a nova lei preferiu confiar a condução das licitações em geral a um agente individual de contratação, abandonando a figura da comissão colegiada de licitação, somente cabível, nos termos da nova lei, quando o objeto a ser contratado constituir bem ou serviço especial, dado que o exame de suas especificações não se poderá valer daquelas usuais no mercado, tal a heterogeneidade e a complexidade do objeto. Nessa isolada hipótese, é de retornar-se à responsabilidade do colegiado, somente escusando-se o membro da comissão que ressalvar posição divergente na respectiva ata.

    Seja qual for o agente, a regra do art. 7º, I, abre espaço para o exercício de discrição ao fixar que a designação terá como primeiro requisito o de ser servidor preferencialmente efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração pública. Decerto que o advérbio indica a preferência da lei, devendo, pois, ser obedecida. Mas também está a indicar o reconhecimento pela lei de que poderá ocorrer situação em que a Administração não conte, em seus quadros permanentes, com servidor efetivo apto ao desempenho das funções, daí admitir, como exceção, a possibilidade de ser designado quem não o seja. Tratando-se, como se trata, de exceção, tal designação há de ter os seus motivos explicitados no respectivo ato, sob pena de reputar-se inválida a designação e, por conseguinte, os atos praticados pelo designado. Convém, pois, recordar que servidor efetivo do quadro permanente é o titular de cargo público de provimento mediante concurso público (CF/88, art. 41). Diversamente do servidor que, não tendo sido aprovado em concurso público, venha a ocupar cargo em comissão mediante livre nomeação pela autoridade competente, sendo dele demissível ao nuto dessa mesma autoridade e fazendo jus ao sistema geral da previdência social (CF/88, art. 40, § 13). Os cargos em comissão integram os quadros permanentes da Administração, mas aqueles que os ocupam podem não ser servidores efetivos, o que, como regra, a nova lei pretende evitar para o desempenho das funções essenciais às licitações e contratações administrativas.

    Tal opção da nova lei põe em relevo a especialização e a efetividade do agente público, que, em sede doutrinária, é definido como “a pessoa física que, vinculando-se juridicamente a uma pessoa pública, dispõe de competência legalmente estabelecida para o desempenho de função estatal em caráter permanente ou transitório” (Rocha, Carmen Lúcia Antunes, Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Ed. Saraiva, 1999, p. 59).

    O fundamento ético dessa expressa preferência da nova lei estará no dever de lealdade que o servidor efetivo assume ao ser nomeado e firmar o compromisso do exercício do cargo após aprovação em concurso público, e do qual somente poderá ser demitido mediante processo sujeito ao contraditório e à ampla defesa (CF/88, art. 41, § 1°), compromisso esse que não acompanha o servidor que, sem vínculo efetivo com o serviço público, assume o exercício de cargo em comissão com a eventual deformação de que o seu compromisso de lealdade se dá com a autoridade que o nomeou, e, não, com o serviço público, o que o deixaria vulnerável se desatendesse aos desígnios pessoais daquela autoridade, que o pode exonerar a qualquer tempo apenas pela quebra da relação de confiança (CF/88, art. 37, II, in fine).

    Outro relevante requisito se encontra no inciso II, do mesmo art. 7°. Além de ser servidor efetivo, o agente a ser designado deve ter “formação compatível ou qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo poder público”. O fundamento desse requisito reside no preparo técnico do servidor, que haverá de ser formado no desempenho das funções especializadas do processo de contratação administrativa, especialização essa que se supõe seja a essência dos cursos de aperfeiçoamento que aquelas escolas de governo devem ministrar, inclusive por força do disposto no art. 39, § 2º, da Constituição da República. Tais escolas de governo encontram-se em todas as esferas e poderes, tais como são as escolas da magistratura, do ministério público, da advocacia pública, das procuradorias estaduais e municipais.

    Ainda de realçar-se a aplicação, recomendada pelo art. 7º, § 1º, da diretriz da segregação de funções, em face da qual o mesmo servidor não deve ser designado para desempenhar funções superpostas ou que exerçam controles diretos ou reflexos umas sobre as outras, como, por exemplo, a de ser agente de contratação e, ao mesmo tempo, integrante do órgão de controle interno ou da assessoria jurídica. Como bem adverte o dispositivo legal, tal atuação simultânea expõe a riscos da ocorrência de erros e fraudes na medida em que se concentra nos mesmos agentes funções cujo papel precípuo é o de evitar direcionamentos que passem desapercebidos exatamente porque faltou quem deles se apercebesse em razão da concentração de poderes, inclusive com repercussões financeiras.

    Em suma, o agente público a ser designado para exercer funções essenciais nos processos licitatórios e de contratação administrativa deve ser titular de cargo de provimento efetivo, apresentar qualificação certificada por escola de governo e desempenhar funções próprias segregadas.

    Vedações e impedimentos

    O art. 9º da Lei nº 14.133/21 impõe vedações e impedimentos aos agentes públicos em atuação nos processos de licitações e contratações administrativas. A rigor, replica itens referidos nos artigos 3º e 9º da Lei no 8.666/93, de modo a destacar os valores fundamentais de toda licitação, que, por isto mesmo, não podem ser contornados ou afastados pelos agentes responsáveis, tais como a competitividade, a isonomia, o devido processo legal, nem ocultados, como conflitos de interesses que prejudiquem a competição isonômica e impessoal, essencial a toda licitação.

    Esses valores fundamentais inspiram as legislações, nacionais e internacionais, que tratam das contratações públicas, podendo mesmo dizer-se que a capital distinção entre essas legislações não estaria no seu conteúdo principiológico ou normativo, mas no teor de seriedade com que os agentes públicos e os do mercado se conduzem e participam dos certames seletivos. Quanto maior a seriedade, maior a eficiência e a eficácia que deles resultarão. Quanto menor a seriedade, maior o disfarce que compromete a competição, a isonomia, a impessoalidade, a moralidade e o devido processo. Presente, portanto, em grande dose, o fator cultural, presidindo a atuação dos agentes públicos e privados participantes de licitações como algo inerente aos costumes e valores norteadores de dada sociedade.

    Assim bem sintetizam os incisos e alíneas do art. 9º da nova lei, classificando como intoleráveis situações - vale dizer, condutas -, que comprometam o caráter competitivo do processo licitatório, estabeleçam preferências ou distinções em razão de naturalidade, sede ou domicílio, sejam impertinentes ou irrelevantes para o objeto específico a contratar, tracem tratamento diferenciado entre empresas brasileiras e estrangeiras, retardem o andamento dos processos para beneficiar tal ou qual interesse sectário.

    Os agentes públicos que pratiquem tais condutas, ou as encobertem quando praticadas por agentes privados, estarão fraudando a essência do conceito de licitação e concorrendo para resultados contrários aos interesses da sociedade e do estado, ao firmarem contratos viciados por preferências indevidas.

    Nada, a rigor, há de novo, nesse tratamento legal. O que se apresenta como novidade nesse capítulo dos agentes públicos está no art. 10, que consente em atribuir à advocacia pública a defesa de autoridades e agentes públicos que, se havendo conduzido de modo conforme a parecer do órgão de assessoramento jurídico, venham a ser acusados da prática de irregularidades, em esfera judicial ou extrajudicial, possibilidade que já vinha sendo admitida em precedentes do Tribunal de Contas da União. A contrário senso, se a autoridade ou o agente pauta sua conduta funcional ignorando a orientação do parecer jurídico ou dele divergindo, não fará jus àquela defesa pela advocacia pública, se vier a ser acusado de irregularidades ou ilegalidades. Em outras palavras, a advocacia pública deve assumir a defesa não apenas da autoridade ou do agente acusado, se não que, também, reflexamente, a defesa de suas próprias posições, que constaram do parecer jurídico seguido pela autoridade ou pelo agente. E se a advocacia pública vier a reconhecer que a orientação lançada no parecer agora impugnado estava efetivamente equivocada? Estaria o agente que aplicou tal parecer escusado de responder pela erronia do parecer que seguiu? É de ponderar-se que sim, caso se demonstre que o agente não teria meios de saber do erro do parecer e o seguiu de boa-fé, que se presume, ao contrário da má-fé, que haveria de ser comprovada no caso concreto.

    Derradeira observação cabe nesse ponto. A imposição do patrocínio da defesa à advocacia pública, uma vez estabelecida por lei federal, há de ser acatada por órgãos e entidades da administração federal. Mas será cabível ponderar-se se tal patrocínio poderá ser imposto por lei federal a órgãos das administrações estaduais e municipais, que gozam da autonomia de organização político-administrativa consagrada no art. 18 da Constituição da República, seguindo-se que o dever de patrocínio haveria de decorrer da norma estadual ou municipal regente da respectiva advocacia pública. Dúvida a ser dirimida, oportunamente, na via própria, pela Corte Constitucional.

    Principiologia da nova lei

    O direito público ocidental conheceu, nos últimos cinquenta anos, notável revisão de conceitos. Moveu-a, e ainda a move, a estratégia de submeter o estado a controles que afastem a concentração de poderes de que se valem regimes totalitários para, qualquer que seja a matriz ideológica ou idiossincrática dominante, haver produzido duas grandes guerras mundiais na primeira metade do século XX, com toda sorte de perdas, traumas e consequências. Além de confrontos ideológicos permanentes - como a chamada “guerra fria”, acentuada nos anos 50 a 70 da mesma centúria -, que poderiam haver resultado em novas lutas devastadoras.

    O movimento constitucionalista do pós-guerra deflagrou a revisão ao cunhar o primeiro dos paradigmas que passariam a reger a gestão estatal, qual seja o da supremacia da Constituição. Os Textos Fundamentais então promulgados em França, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal – não por acaso países profundamente afetados por aqueles conflitos bélicos de 1914-18 e 1939-45 – optaram por conciliar princípios e normas, de modo a construir um modelo que invertesse a submissão da sociedade ao estado. Eis a origem das referências expressas a fundamentos principiológicos – como o da dignidade da pessoa humana –, tanto quanto a diretrizes definidoras de políticas públicas. Tudo no evidente propósito de colocar o respeito ao homem e ao atendimento de suas necessidades essenciais (educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social e assistência aos desamparados) como vetores limitadores e orientadores da autoridade estatal. Nenhuma ação de estado será legítima se os ignorar. A Carta brasileira de 1988 segue o modelo ao vincular todos os poderes constituídos do estado aos fundamentos e princípios enunciados em seus artigos 1º e 37, bem assim às políticas públicas traçadas em capítulos específicos, a partir dos direitos sociais capitulados em seu art. 6º.

    O segundo paradigma, corolário do primeiro, é o da efetividade dos princípios. Os compêndios do século passado ensinavam que princípio era toda proposição geral, impessoal e abstrata a desafiar o futuro, na qualidade de norma tão só programática. Hoje, princípio continua sendo proposição geral, impessoal e abstrata, todavia com a índole de norma cogente, provida de eficácia e de sanção para o caso de descumprimento. A nenhum dos poderes da república, em qualquer das esferas federativas, é dado imaginar que os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, insertos na cabeça do art. 37 da Constituição de 1988, devam ser entendidos como mera condição – evento futuro e incerto. Devem presidir toda e cada ação de gestão estatal desde já, podendo a sua dolosa desobediência configurar improbidade administrativa, tal como previsto no art. 11 da Lei nº 8.429/92.

    Assim se verifica com a introdução, a partir da Lei nº 8.666/93, na esteira do art. 37, caput, da Constituição da República, da referência a princípios, que devem conformar a gestão e cujo descumprimento, tanto quanto o descumprimento de regras objetivas, configura conduta passível de sanção. Naquela primeira sede legislativa brasileira sobre o tema, seus artigos 3º e 41 fazem referência a onze princípios expressos e aos “que lhe são correlatos”. A nova lei, em seu art. 5º, menciona vinte e dois princípios, ou seja, dobrou o número. O que significa essa dobra e quais as consequências para sua aplicação no âmbito do processo histórico-cultural que é, portanto também econômico, financeiro, político e jurídico.

    A Lei nº 14.133/2021 propõe novo arranjo teleológico, pretendendo submeter a interpretação de suas 1.432 normas (somando-se artigos, parágrafos, incisos e alíneas – o dobro do mesmo total que se extraía da Lei nº 8.666/93) às regras de hermenêutica constantes da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, bem como aos princípios que enuncia.

    Partindo-se da premissa de que todo o agir humano se desdobra nos planos da estratégia, da gerência e da operação, os princípios constituem as proposições gerais, impessoais e abstratas, providas de sanção em caso de descumprimento, em que se funda um sistema jurídico, seus valores e finalidades, vale dizer, o seu nível estratégico.

    Como pondera Moreira Neto, “Os princípios podem se hierarquizar na ordem jurídica sob os critérios formal, enciclopédico e axiológico. Na ordem jurídica brasileira, desde logo, em razão da supremacia constitucional, define-se a hierarquia formal entre os princípios constitucionais e os princípios infraconstitucionais. Há também implícita na ordem constitucional a hierarquia enciclopédica entre os princípios, resultante da disposição topológica empregada na enunciação de seus Títulos, refletindo a abrangência dos valores e das finalidades que neles se contenham, distinguindo-se os princípios fundamentais..., os gerais... e os setoriais. Em todos os exemplos colhidos, é empregada a mesma expressão – princípios -, mas, reiteradamente, o legislador constitucional emprega expressões menos precisas, mas com idêntico propósito, tais como diretrizes, objetivos ou até requisitos” (Curso de Direito Administrativo, p. 78. Ed. Forense, 16a ed., 2014).

    Tanto isto é vero que o art. 174, caput e § 1º, da CF/88, deduz que, sendo o Estado o agente normativo e regulador da atividade econômica, exercerá, entre outras, a função de planejamento, determinante para o setor público e indicativo para o setor privado, incumbe a lei estabelecer “as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado...”.

    A Lei nº 14.133/21 faz a principiologia interagir com as regras hermenêuticas de aplicação do direito público previstas na LINDB (artigos 20 a 30), destacando-se o denominado “consequencionalismo”, que consiste em compelir o gestor público a empenhar-se por divisar os possíveis efeitos futuros de suas decisões, de modo a evitar desperdícios e contradições, com o que se deve sobremodo preocupar o processo das licitações e contratações administrativas, deixando em segundo plano o formalismo exagerado. Além de cuidar-se para que as escolhas administrativas se concentrem nas causas dos problemas que pretendam solucionar, e, não, apenas, sobre os seus efeitos, que subsistirão se as causas não forem debeladas.

    Averbem-se exemplos conhecidos dos repertórios jurisprudenciais brasileiros, arrolando princípios tidos como desrespeitados, em matéria de licitações e contratações administrativas:

    (a) princípio do devido processo legal (CF/88, artigos 5º, LIV e LV, 37, caput e XXI, e 175; Lei nº 8.666/93, art. 4º): (i) supressão ou inversão de fases; (ii) pareceres jurídicos ou técnicos que induzem gestor a ilicitude; (iii) exigências editalícias que comprometam a competitividade; (iv) condutas configuradoras de improbidade administrativa;

    (b) princípio da impessoalidade: (i) fixação de critérios e fatores de julgamento de propostas que adotem discrimen indevido; (ii) aceitação de preços superiores aos de mercado; (iii) exigências que contornem as restrições do art. 3º da Lei no 8.666/93;

    (c) princípio da moralidade: (i) contratação direta fora das hipóteses legais de dispensa ou inexigibilidade de licitação; (ii) falseamento de conceitos legais, vg, “emergência ficta”; (iii) improbidade administrativa = imoralidade qualificada por má- fé; (iv) dolo integrante do tipo dos crimes definidos nos artigos 89-99 da Lei nº 8.666/93);

    (d) princípio da publicidade: (i) contratação de serviços privados de atendimento para hospitais públicos; (ii) publicidade como requisito de eficácia dos contratos (Lei nº 8.666/93, art. 61, p. único);

    (e) princípio da eficiência: (i) a comprovação de qualificação técnica e de qualificação econômico-financeira (Lei nº 8.666/93, artigos 30 e 31) é indispensável para assegurar a aptidão do licitante para a execução do objeto, de modo a produzir os resultados planejados pela administração, daí a inabilitação do licitante que não as comprove; (ii) impugnação de editais que exijam itens de qualificação incompatíveis com os requisitos legais, vg, Lei nº 8.666/93, art. 30, § 1º, I (CF/88, art. 37, XXI, parte final);

    (f) princípio da isonomia: (i) formalismo exagerado pode produzir desigualdade injustificável e abalar a competitividade (vg, propostas em papel timbrado, seguro- garantia prévio à inscrição do licitante em registro cadastral, localização geográfica de sede, propriedade de equipamentos ou provimento de pessoal técnico anteriores à contratação, atraso tolerável no comparecimento à sessão de julgamento, inexistência de empregados com nome inscrito em cadastros restritivos de crédito); (ii) irregularidade formal na proposta não a invalida;

    (g) princípio da vinculação ao instrumento convocatório: (i) vedação a interpretação ampliativa ou restritiva de cláusulas editalícias, de modo a exigir a maior ou a menor do que o previsto; (ii) possibilidade de a administração alterar o edital publicado, desde que reaberto o prazo de publicidade (Lei nº 8.666/93, art. 21, § 4º); (iii) outorga indevida de poderes discricionários à comissão de licitação ou ao pregoeiro para adaptações procedimentais (vg, limitação ao número de rodadas de lances no pregão);

    (h) em reajuste ou revisão de contrato: áleas ordinária, extraordinária e administrativa (prerrogativas); regência dos artigos 40, XI, 58, § 1º, e 65, “d”, da Lei nº 8.666/93; dissídio coletivo não é fato imprevisível, daí não constituir álea extraordinária que autorize revisão de contrato;

    (i) correção monetária de valores devidos pela administração: sempre deve incidir quando houver pagamento com atraso e mesmo que o contratado tenha dado quitação dos valores recebidos; também no caso de nulidade do contrato, desde que tenha havido execução do objeto até a data da invalidação; enriquecimento ilícito da administração; cálculo (Lei nº 8.666/93, artigos 5º, 7º, § 7º, e 55, III);

    (j) revogação ou anulação de contrato (Lei nº 8.666/93, artigos 49 e 59): (i) direito ao contraditório após adjudicação e homologação (antes, é ato discricionário); (ii) ilegalidade de a administração reter pagamentos, a pretexto de dar cumprimento ao art. 55, XIII, da Lei nº 8.666/93.

    No âmbito do controle externo, sucedem-se decisões do Plenário do Tribunal de Contas da União que se valem dos princípios para apurar a regularidade da conduta de agentes públicos nas licitações e contratações administrativas. Assim:

    (a) Ac. 3.143/2020, que invocou o princípio da seleção da proposta mais vantajosa para sancionar pregoeira que não atuou, na avaliação do tribunal, para que fosse obtida a contratação mais vantajosa;

    (b) Ac. 234/2015, que, com base nos princípios da moralidade e da probidade administrativa, sancionou presidente de comissão de licitação e assessor jurídico por conta de o edital de certame haver exigido vistoria no local de execução das obras licitadas, reunindo todos os competidores nos mesmos horário e local, de modo a permitir que tanto os gestores públicos tivessem prévio conhecimento dos licitantes quanto estes conhecessem o universo dos concorrentes, “criando condições propícias para a colusão”;

    (c) Ac. 769/2013, que, fundado no princípio do julgamento objetivo, em licitação de técnica e preço, penalizou a adoção de critérios subjetivos de julgamento;

    (d) Ac. 1.033/2019, que, invocando os princípios da isonomia e da vinculação ao instrumento convocatório, julgou representação que apontava irregularidades em contrato celebrado pela administração do Superior Tribunal de Justiça, objetivando a “implantação de solução de videoconferência e multimídia para sala de videoconferência e reunião, ensejando a entrega de equipamentos diferentes dos que constaram na proposta vencedora da licitação e de qualidade inferior; na instrução do processo, comprovou-se que a comissão de recebimento do objeto contratado negociou a celebração de termo aditivo com aceitação dos equipamentos entregues, mediante a concessão de desconto no preço, ainda que desatendidas as especificações do edital; a representação foi acolhida e imposta multa aos responsáveis;

    (e) Ac. 2273/2016, que, com base no princípio da publicidade, impôs multa a pregoeiro que suspendeu etapas da sessão de julgamento das propostas em várias oportunidades, sem aviso prévio para a retomada dos trabalhos por meio de chat.

    Resulta evidenciado que o titular do controle externo verifica, em processo regular, observadas as garantias do contraditório e da ampla defesa, se houve violação a normas e, havendo, as encaixa nos princípios que as inspiram e justificam a censura à conduta dos agentes administrativos. Ou seja, na visão do tribunal, o fundamento da sanção não está, apenas, na violação de uma regra positivada na lei ou no regulamento, até porque haverá situações não previstas pelas regras. Mas se a conduta afronta princípios, justifica-se a sanção. O que leva ao desafio jurídico de nosso tempo: a ponderada aplicação de princípios basta à imposição de sanções ou estas apenas seriam cabíveis em face de objetivo descumprimento de norma positivada nas circunstâncias do caso concreto, como corolário da tipicidade no âmbito do direito penal? Como se viu do mini mostruário acima, tem prevalecido o entendimento de que, no direito administrativo contemporâneo, os princípios normas jurídicas são e sua violação justifica a penalização e a retificação de conduta tida como abusiva.


     

    *Jessé Torres Pereira Junior. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Conferencista emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Professor convidado de Direito Administrativo em cursos de especialização da FGV Direito Rio e da Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ. Presidente do Fórum Permanente de Gestão Pública Sustentável e Vice-presidente do Fórum Permanente de Transparência Pública e Probidade Administrativa da EMERJ. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros. Listado como árbitro no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Autor articulista do projeto Governança da Educação, da Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI). Autor e coautor de livros e artigos em matéria de direito público.